sábado, fevereiro 24, 2018

(I) Onze variações sobre o tédio


1. O tédio é nada ter para fazer. É estar confrontado, inevitavelmente, ao vazio que nos precede e ao nada que nos espera. Quer isto dizer que o tédio, o “mortal aborrecimento” de que falava Racine, não é coisa pouca, porque constitui uma tragédia.
2. Escreve Schopenhauer: “A vida oscila, como um pêndulo, de um lado para o outro, entre a dor e o tédio. A vida do ser humano flui inteiramente entre o querer e o conseguir. O desejo, conforme sua natureza, é dor: alcançá-lo significa gerar rapidamente a saciedade. O objetivo era apenas aparente; a posse tira o encanto; o desejo e a necessidade reapresentam-se com um novo aspeto. Quando isso não ocorre, seguem-se a solidão, o vazio e o tédio, contra os quais a luta atormenta tanto quanto contra a miséria. “
3. A vida é uma sucessão de momentos entre aqueles em que sentimos falta de uma coisa e aqueles em que a possuímos. Mas é, nessa altura, que ela perde o interesse antes imaginado. passa-se então para o sofrimento da satisfação de se ter, para o tédio de se sentir saciado.
4.Um exemplo prático deste paradoxo é o de quem trabalha toda a semana a pensar no que poderá fazer no domingo e chega ao dia aprazado e não lhe apetece nada do que julgara nele concretizar, acabando por se aborrecer no sofá em frente à televisão.
5. Fiquemo-nos, então, com Paul Valéry: "Interrupção, incoerência, surpresa são as condições comuns da nossa vida. Elas tornaram-se necessidades reais para muitas pessoas, cujas mentes deixaram de ser alimentadas... por outra coisa que não mudanças repentinas e estímulos constantemente renovados... Não podemos tolerar mais o que dura. Não sabemos fazer com que o tédio dê frutos. Assim, toda a questão se reduz a isto: pode a mente humana dominar o que a mente humana criou?"
6. A citação de Valéry explica a necessidade de muita gente repetir as expressões «Fantástico!», que vemos quotidianamente repetidas nas tevês nas mais variadas circunstâncias em que, quem as diz, não tem outra forma de exprimir o que de supostamente excecional está a viver. O objetivo passa a ser o de «matar o tempo», fazer com que o terrível tédio não tenha hipótese de se instalar.
7. Há o desejo permanente de fazer algo, mas se não se consegue formular o objetivo que o direcione para uma ação, está-se condenado ao vazio, a um tempo que desfila devagar sem que nele se invista algo de substantivo. Razão para Cioran constatar que “seremos uns falhados se não encontrarmos um sentido para a vida. Porque só neste caso, tudo o que não tivermos concretizado constitui uma queda, um pecado. Num mundo dotado de uma finalidade, que tenda para alguma coisa, somos obrigados a alcançar os nossos próprios limites”.
8. Há um paralelismo evidente entre o tédio e a morte. Atormentamo-nos com a possibilidade de ambos, que justificam as mais profundas abordagens metafísicas. E soluções, porque era para vencê-las, que importava valorizar o divertimento, mesmo que ele se revelasse contraditório com a condição humana como o denunciava Pascal, que lamentava a miséria de um Homem sem a existência de Deus: “A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e contudo é a maior das nossas misérias. Porque é isto que nos impede principalmente de pensar em nós, e que nos faz perder insensivelmente. Sem isso, estaríamos no tédio, e este tédio levava-nos a procurar um meio mais sólido de sair dele. Mas o divertimento distrai-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.
9. Nós somos feitos para a ação, para ter objetivos,. Por isso Kant sentia-se encantado com a expulsão de Adão e de Eva do Paraíso, porque morreriam de tédio se se contentassem em gastar o tempo a cantar temas pastorais. O trabalho agrícola libertara-os dessa maldição.
10. O melhor exemplo de lucidez perante o tédio, rejeitando a vaidade da sua condição e a vacuidade das distrações, dos divertimentos, é o de Oblomov, o protagonista do romance de Goncharov, que passava os dias a dormir sem desejar fazer outra coisa senão esse afundar-se nos seus sonhos.
11. Será necessário aborrecermo-nos para que possamos compreender o que dissimulam as pessoas atarefadas? Será necessário descermos do comboio para nos lembrarmos da catástrofe, que nos espera? Será difícil aceitarmos a ideia de termos nascido por acaso num mundo que se está nas tintas para nós, antes de morrermos sem nunca encontrarmos as respostas? E se o tédio for o melhor dos pedagogos? E se a miséria do homem corresponder à fuga do tédio em vez de o vivenciar na plenitude?

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