De há muito que comecei a frequentar os espetáculos de O Bando, pela garantia de neles sempre encontrar motivos de surpresa, e quantas vezes de encantamento.
Quando me questiono sobre a melhor peça de teatro a que assisti na já longa carreira de teatrófilo não hesito em colocar em primeiro lugar o «Ensaio sobre a Cegueira» baseado em Saramago. E, no entanto, quanto a medo tinha abordado a peça, ciente (erradamente!) de que ninguém conseguiria traduzir cenicamente o admirável romance do nosso Nobel.
Agora, para comemorar o 40º aniversário da Companhia, João Brites e os seus cúmplices dão-nos a viver uma experiência inesquecível.
Iniciada no centro de Palmela, no Cineteatro São João, onde se compram os bilhetes, prossegue com um pequeno passeio pedestre até ao local do primeiro encontro intitulado «O Regresso a Casa».
Recebem-nos a Alba (de “A Noite” do Al Berto) e a Joana, que conhecêramos nos Jerónimos por ser personagem de “A Saga” de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Elas apresentam-nos o José Maria, que será o nosso guia na viagem prestes a começar para a qual recebemos logo um pão com queijo e uma água como abastecimento para o que der e vier.
Elas pedem-nos que falemos tão baixo quanto possível e sentem-se intimidadas por quem nos possa espreitar da rua. Porque estamos num sítio onde se pressente a tensão das cadeias que oprimem. E é delas que nos vem falar o Poldro (personagem de Manuel António Pina), que anseia por ir para o solarengo Sul, mas a tal não se arrisca, ou a Lurdes (conhecida em “Os Vivos” numa memorável noite de mau tempo em 2007, quando andávamos pela quinta do Vale dos Barris para a ouvirmos na paragem do outro lado da estrada a ela adjacente), que espera os homens numa esquina, e se revela presa num passado eivado de sofrimento.
Será ela a levar-nos ao autocarro, depois do Poldro ganhar coragem e sair desaforado, rua fora, a correr em direção ao sítio para onde canalizara todas as suas ilusões.
Durante um bom bocado andaremos às voltas sem vermos por onde, que a viatura tinha as janelas tapadas impedindo-nos de nos situar.
Que importava? O que de interessante tínhamos para ver situava-se lá dentro, primeiro com o Padre Simas, saído da imaginação de Manuel Teixeira Gomes, que nos prometeu levar para a inauguração de uma casa de banho, e logo seguido de outros sucessivos passageiros: o Menino saído de um texto de Jorge de Sena para vir à procura do seu pai, ou o Senhor de “Os Cágados” de Almada Negreiros, que deixara em 1985 outro personagem inesquecível da mesma peça - o que passava todo o tempo à procura da China sem saber como lá chegar.
Chegamos, enfim, à comemoração. Ao jantar temos a companhia de mais personagens vindos de sucessivas histórias que marcaram a vida de O Bando nestes quarenta anos: a Freira pessoana (porém mero disfarce do Diabo), a prestável Marta de «Gente Feliz com Lágrimas» do João de Melo e o Administrador do «Cão Tinhoso» de Luís Bernardo Hongwana.
No todo serão quarenta as personagens que deambulam à nossa frente e noutros espaços adjacentes, onde tanto se dá que a morte nunca acabe por encontrar quem anda sempre a procurar, como o seu contrário. Depende dos dias e em que grupo de espectadores nos situemos.
O grande final junta as dezenas de atores e de instrumentistas da orquestra que, dirigidos por João Salgueiro, interpretam a belíssima peça orquestral, a lembrar o melhor de Philip Glass.
O desenlace é luminoso: os muros e abismos existem para ser derrubados, os sonhos têm a essência da sua imperiosa concretização. Se não hoje, será para amanhã. E quem se mostre incapaz de conceber utopias poderá ter a certeza de que já está morto. Porque quem não procura e se queda no mesmo lugar é como se já não visse, não ouvisse, não sentisse. Algures no desenlace dos nossos sonhos existirão porventura as tais alamedas largas por onde passará o homem livre, tal qual Allende nos prometeu da última vez que lhe pudemos ouvir a voz...
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