Está atualmente a decorrer no Nimas um ciclo de cinema dedicado ao grande realizador indiano Satyajit Ray, que se irá prolongar por várias semanas e com um conjunto muito significativo dos títulos da sua filmografia.
Porque só este domingo me decidi a abordar esta iniciativa, veio-me ao encontro um filme manifestamente menor, mas suficientemente explícito sobre o estilo e as preocupações mais comuns na obra de Ray.
Em «O Deus Elefante», filme estreado em 1979, encontramos o detetive Feluda a passar férias em Benares com o seu primo e assistente Tapesh e com o amigo escritor Lalmohan Ganguly.
Mas o que prometiam ser umas férias aprazíveis transforma-se numa nova investigação a pedido da família Ghosal a quem terão roubado uma valiosa estatueta do deus Ganesh (o deus elefante) do cofre da sua residência.
O principal suspeito será Maganlal Meghraj, um comerciante corrupto, muito embora Feluda também olhe com desconfiança para uma misterioso homem-santo, acabado de chegar às margens do Ganges.
Sayajit Ray decidiu voltar ao personagem Feluda - que já criara e utilizara cinco anos antes em «A Fortaleza de Ouro» - depois do fracasso comercial do seu filme precedente, «Jogadores de Xadrez».
Ele criara esse detetive inteligente muito antes, quando o fizera protagonista de diversos romances e novelas, uma das quais esteve na origem deste argumento.
Seguindo a pista do objeto artístico roubado, Feluda vê-se a contas com um antagonista impiedoso, mas o filme, embora divertido, nunca alcança os patamares de qualidade das obras primas do realizador.
O destinatário do filme é o público mais jovem, recorrendo por isso a doses acrescidas de humor.
Se a intriga obedece aos cânones policiais, nunca se orienta para a soturnidade dos filmes negros, antes amortece as tensões através do riso. Veja-se, por exemplo, a cena em que conhecemos o musculado co locatário dos três protagonistas, exata oposição do feitio cerebral de Feluda. Ou uma outra, quando Lalmohan, o amigo de Feluda, é obrigado a servir de alvo a um lançador de facas a mando do biltre Maghraj. Se começamos por nos sujeitarmos a uma tensão expectante, ela dá lugar ao riso à medida que o tremelicante lançador vai acertando nos centímetros adjacentes ao corpo do escritor.
Numerosas, essas cenas revelam-se eficazes constituindo um dos motivos mais interessantes do filme. O humor, como quase sempre sucede, reside na simpatia por quem o interpreta. Ora, nós reencontramos aqui Soumitra Chatterjee, que já aparecia em «O Mundo de Apu», em «Charulata» ou «Kapurush», associando-se a ele uns quantos atores bem conhecidos do cinema indiano: Harradhan Bannerjee ou Kamu Mukherjee.
Mas se a qualidade dos atores é credível, a dos personagens em si é mais contestável por reduzirem-se a meros estereótipos: os bons são perfeitos e infalíveis, enquanto os maus só parecem ter defeitos.
Ray aproveita para dar algumas piscadelas de olho à banda desenhada «Tintin», com Feluda a assemelhar-se ao herói de Hergé na inteligência e coragem, mas sem ter a consistência bastante para suscitar alguma empatia. Na realidade à exceção do avô, que mostra algum conteúdo, os demais personagens pecam por serem invariavelmente monolíticos.
Resulta daí o progressivo desinteresse com que o espectador vai seguindo a história: às tantas já pouco nos importa o que sucederá aos personagens e se a investigação chegará a algum resultado.
Para além dessa superficialidade com que os personagens são criados, também a própria intriga segue o mesmo caminho. É certo que a estatueta roubada é um verdadeiro «mcguffin» na melhor tradição de Hitchcock, mas se ela pouca interessa ao espectador, dá para questionar por que razão estão nela obcecados os protagonistas do filme. Para quê mobilizarem-se para encontrar um objeto insignificante, que terá sido roubado, mas afinal o não foi?
As mudanças de rumo na história decorrem sem grade ritmo, sem verdadeiro sentido do cinema de aventuras. Pode-se associar «O Deus Elefante» aos thrillers de aventuras de Hitchcock, nomeadamente com «O Homem que Sabia Demais» (1956), mas onde o mestre do suspense consegue inquietar a cada sequência, Ray só entedia.
E, no entanto, algumas das cenas até poderiam ter acarretado maior intensidade - por exemplo aquela em que um dos personagens morre e é rapidamente esquecido - como se Ray quisesse apagar o mais rapidamente possível algum vestígio mais negro.
É certo que o objetivo óbvio do filme é oferecer um divertimento para toda a família, mas quer-se tudo tão certinho e limpinho, que prejudica seriamente a dinâmica do filme.
Felizmente Ray prodigaliza-nos as suas preocupações estéticas ao dar-nos a ver as ruas de Benres. Mas estão distantes as cenas antológicas criadas por Ray, quando criara grandes frescos neorrealistas.
«O Deus Elefante» não é o filme mais ambicioso de Satyajit Ray.por muito que ele aproveite para denunciar o contrabando de obras de arte indianas para fora do país. É que, infelizmente, ele não se mostra à vontade neste tipo de registo.
Sem comentários:
Enviar um comentário