terça-feira, outubro 21, 2014

LEITURAS: «Ana de Londres» de Cristina de Carvalho

Em 1973 deveria concluir o liceu, mas passei todo o verão a estudar matemática, porque chumbara no exame de junho e via-me obrigado a ser melhor sucedido naquilo que designávamos como «a segunda época».
Foi em vésperas desse exame, que me contaram a novidade: semanas antes uma das nossas colegas de turma zarpara para a Suécia a fim de se juntar ao namorado, que também frequentava  o «barracão» de Almada, e cuja perspetiva de convocação para a guerra colonial convencera a emigrar.
Já não os recordava há anos, mas esta novela de Cristina de Carvalho trouxe-mos de volta. Porque a protagonista, essa Ana cujo nome dá título ao livro, faz exatamente o mesmo: no final da década de sessenta parte para Londres ao encontro do namorado, João Francisco, também ele em vias de se ver obrigado a partir para África.
Estamos, pois, perante o retrato de um tempo que, tal qual eu, muitos milhares de potenciais leitores do livro, viveram. Quando as únicas novidades se resumiam à partida de novos contingentes militares da doca de Alcântara ou da Rocha de Conde de Óbidos e, como diz Miguel Real no prefácio vivia-se no “Portugal das pulsões recalcadas e dos desejos bloqueados”.
Desconheço se aqueles antigos colegas foram ou não felizes. Muitos anos depois, num dia em que pusera o carro na revisão e me vira obrigado a passar a Ponte de autocarro, pareceu-me reconhecer ela em pé a poucos metros de mim. Ainda ponderei falar-lhe, mas contive-me, porque acaso dela efetivamente se tratasse já pouco tinha a ver com a rapariga alegre e sempre vestida à moda, que me ficara na lembrança. Pelo contrário convertera-se numa daquelas empregadas de escritório precocemente envelhecidas, como se tudo quanto lhe acontecera e estaria por acontecer superassem em muito as suas forças.
Com Ana é precisamente isso o que se verifica: engravida em Londres e vê o namorado desaparecer-lhe da vista intimidado com a responsabilidade da paternidade.
Regressa então a Portugal, entrega aos pais a educação do pimpolho e vai sobrevivendo a empregos sem interesse e a homens, que se embriagam e a violentam. Até o cancro a levar muitos anos depois, como conta a amiga de infância que a tudo assistiu, sem ir além do seu papel de narradora da história.
Cristina de Carvalho já a contara num dos contos que, em 1989, integrara o seu primeiro livro publicado. Duas dúzias de anos depois, e em versão mais ampliada, voltou a ela e acrescentou-lhe um novo final.
Para além do seu estimável valor literário, «Ana de Londres» incitou-me a revisitar memórias, que já julgava completamente perdidas... 

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