Nos livros de Murakami é comum encontrarmos personagens que, involuntariamente, saem do nosso mundo, e das respetivas referências, para outro onde tudo ganha características singularmente diferentes. É o que se passa com a protagonista feminina, Aomame: cumprida a missão de executar um gestor conhecido pelas agressões violentíssimas a que sujeitava a esposa, ela começa a ver a realidade à sua volta alterada por notícias de que não se dera conta e agora ganhavam significativa relevância.
Por isso mesmo conjetura: “Pode ser que haja uma função no meu cérebro que tem por objetivo transformar a realidade, e que essa função selecione apenas determinadas histórias e as cubra por completo com um pano negro. A partir do momento em que não as possa ver, não ficam guardadas na minha memória.” (pág. 176)
Mas logo formula outra hipótese: “Se calhar, o problema não está em mim, mas sim no mundo que me rodeia. Não se passa nada de anormal com a minha consciência nem com os meus sentidos, o que acontece é que existe uma força inexplicável que mudou, por si mesma, o mundo em redor.” (pág. 176)
Desconcertada, Aomame recorda tudo quanto fizera nesse dia e começa a suspeitar de ter mudado de realidade. O título do livro terá nessa altura a sua explicação: “ A primeira vez que reparara que uma parte do mundo mudara tinha sido dias antes, ao eliminar o especialista em assuntos de exploração petrolífera num quarto de hotel em Shibuya. Saíra do táxi na linha de Shibuya da autoestrada metropolitana, descera pelas escadas de emergência que iam dar à Estrada Nacional 426, trocara de meias e dirigira-se à estação de Sangenjaya, na linha de Tóquio. Pelo caminho, cruzara-se com um agente da polícia ainda novo, e foi nesse momento que, pela primeira vez, se deu conta de que havia qualquer coisa na aparência dele que era diferente. Isso foi o começo. Sendo assim, a troca de mundos devia ter acontecido antes dessa altura, uma vez que o polícia que encontrara perto da sua casa, naquela mesma manhã, tinha vestido o velho uniforme da ordem e levava consigo um revólver dos antigos.” (pág. 178)
Opera-se nela um mecanismo psicológico de autodefesa: “Quer goste, quer não goste, a verdade é que me encontro no ano de 1Q84. O ano de 1984, tal qual eu o conhecia, já não existe. Estamos em 1Q84. A atmosfera mudou, mudou a paisagem. Tenho de me adaptar quanto antes a este mundo-com-um-ponto-de-interrogação. Tal como acontece com os animais, quando os deixam em liberdade numa floresta desconhecida.” (pág. 184)
Mas surge-lhe, igualmente, a necessidade de uma catarse feita de ter sexo puro e duro com um desconhecido de passagem. É num bar de engate que conhece uma mulher-polícia, Ayumi, com quem decide formar uma sociedade tácita de mútuo apoio nesse objetivo libertador.
Pelo seu lado, Tengo é levado por Fuka-eri para fora de Tóquio para conhecer Ebisuno, um velho antropólogo em cuja residência encontrara abrigo. É este quem lhe conta a história do pai dela, o professor Fukada que liderara uma comuna agrícola de inspiração maoista, extinta ingloriamente depois de uma batalha violenta com a polícia nas montanhas perto do lago Motosu e que dera depois lugar a uma outra de sentido completamente diferente.
O relato do professor Ebisuno sobre a comunidade Vanguarda donde Fuka-eri escapara, mas onde o pai, Fukada, permanecia incomunicável, é objeto de descrição. Para Ebisuno não havia nenhuma lógica na transformação da comuna numa instituição religiosa impenetrável: “A minha amizade com o Fukada vinha de longe. Conhecia-o melhor do que ninguém, conhecia a sua personalidade, a sua forma de ser. Devido ao trabalho que exerço na área da antropologia cultural, não se podia dizer que a minha relação com a religião fosse superficial. Ao contrário de mim, porém, ele era uma criatura política até à medula e regia-se pela lógica e pela razão. Pode inclusivamente dizer-se que detestava todas as religiões, sem exceção. Nunca admitiria uma autorização especial a fim de o grupo passar a ser designado uma instituição religiosa com personalidade jurídica, mesmo por motivos estratégicos.” (pág. 243)
Ficamos, pois, cientes de algo de suspeito envolver essa instituição religiosa.
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