Nos seis textos anteriores vimos que esta trilogia de Marukami tem dois protagonistas: Tengo e Aomame.
Tengo é professor de matemática, mas sobretudo escritor, ainda que não reconhecido como tal. Mas conta com uma encomenda imediata, que aceita com algumas dúvidas de permeio: reescrever o romance «A Crisálida de Ar» da autoria de uma adolescente fugida de uma comunidade religiosa chamada A Vanguarda, e com uma história fantástica com todos os atributos para se transformar num best seller.
Mas, Tengo sente algo de muito estranho a passar-se consigo: uma delas é um sonho recorrente cujo significado apenas suspeita. Vê-se com apenas ano e meio de vida perante a mãe, que está a deixar um amante chupar-lhe os mamilos. Será porque pode significar que não é verdadeiramente filho do medíocre cobrador de taxas da televisão pública, com quem vivera a infância e a adolescência? É que, dificilmente proviria dele o inato talento para as matemáticas e para a literatura, sem falar da corpulência de que se vira dotado.
Maior é a diferença que pressente na forma como exprime os dotes na escrita: “Tengo estava consciente de que, à medida que ia escrevendo o seu romance, uma nova fonte se formava dentro dele. Não que a água jorrasse já: era mais uma pequena nascente entre as rochas. O fluxo podia ser limitado, mas era contínuo, acumulando-se gota a gota. Ele não tinha pressa. Não sentia qualquer pressão. Tudo o que precisava de fazer era esperar pacientemente que a água se juntasse na bacia rochosa até ele conseguir recolhê-la. Então sentava-se à secretária, transformava em palavras o que recolhera e a história fluía de forma bastante natural.” (pág. 324)
Por seu lado, Aomame vai visitar a viúva, que lhe paga os serviços de assassinato contra reputados cidadãos, que escondem uma personalidade de perpetradores de violência doméstica. É ela quem lhe justifica as vantagens dos crimes que comete: “graças à circunstância de estes homens horríveis terem tido a gentileza de se afastarem da nossa presença, não houve necessidade de processos de divórcio ou lutas pela custódia dos filhos, nem foi preciso que as mulheres vivessem no terror de que os maridos pudessem aparecer de um momento para o outro para lhes dar uma carga de pancada a ponto de ficarem irreconhecíveis.” (pág. 305)
A exemplo de Tengo, Aomame começa a sentir a vida a mudar, mormente através da amizade estabelecida com Ayumi, uma mulher-polícia com quem acaba por repetir a experiência lésbica outrora vivida com outra rapariga durante a sua adolescência: “Gosto desta rapariga, a Ayumi, não restam dúvidas.Quero ser tão boa para ela, quanto for capaz. Depois da morte de Tamaki, decidi viver sem criar grandes laços, com ninguém. Nunca senti que precisasse de uma amiga. Mas, por qualquer razão o meu coração abre-se para a Ayumi.” (pág. 325)
A maior mudança sucede, porém, quando olha para o céu na madrugada em que deixara a amiga na sua cama e fora para a varanda: “Havia duas luas no céu - uma lua pequena e uma lua grande. Lá estavam, flutuando ao lado uma da outra. A grande era a lua habitual, que vira desde sempre. Estava quase cheia e era amarela. Mas havia outra lua mesmo ao seu lado. Tinha uma forma invulgar. Era ligeiramente disforme e esverdeada, como se estivesse coberta por uma fina camada de musgo.” (pág.321)
Sem comentários:
Enviar um comentário