quinta-feira, outubro 02, 2014

ÉCRANS: « L’ Âge d’Or» de Luis Buñuel (1930)

Em 1930 a estreia de “L’ Âge d’Or” no cinema Ursulines em Paris significou um dos episódios mais marcantes do surrealismo, que estava então em plena afirmação depois da publicação do seu célebre manifesto em 1924.
Quando instado a financiar o projeto, o Visconde de Noailles desconhecia totalmente no que se estava a meter. E, logo na estreia, os espectadores ficaram, no mínimo, estupefactos com o que lhes era dado a ver, já que o filme sabotava deliberadamente a estrutura narrativa, desajustava o som da imagem e desprezava o cânone de respeitar a verosimilhança.
Ainda assim é possível alinhar um fio condutor, que explica o que se vê: num país dirigido por bandidos desembarcam uns maiorquinos encabeçados por bispos, que salmodiam a missa. Os bandidos e os bispos morrem, dando lugar aos fundadores da Roma Imperial - que são as Igrejas e os Estados -, ou seja, tudo quanto oprime o indivíduo.
Entre os fundadores que vêm pôr a primeira pedra está um casal, interpretado por Gaston Modot e Lya Lys, que não hesitam em fornicar na lama à vista de todos os convidados.
A polícia intervém, separa os amantes, leva preso o homem. Enquanto ocorre uma receção em casa dos pais de Lya Lys, os dois amantes a começam por se reencontrar espiritualmente e, depois, na realidade, porque ordens superiores dão instruções para o libertarem.
Para a fama do filme muito contribuiu a ação da Liga Antijudaica que, dois meses depois da estreia, decidiu investir de forma terrorista contra ele, com um grupo de trogloditas a invadirem a sala para pintarem o ecrã, lançarem bombas de fumo e destruírem os quadros de Miró, Max Ernst e Dali expostos no hall.  Estavam criadas as circunstâncias para que, apesar da veemente oposição da imprensa de esquerda, a prefeitura de Paris proibisse a exibição do filme.
Buñuel apostara em dois temas complementares: a contestação social e o amor louco.
O primeiro desses temas aparece explorado em três sequências de significado óbvio:
· no castelo em que decorre a receção lavra um incêndio na zona dos serviços. Como só os criados estão em perigo, os convidados mostram-se completamente indiferentes ao sinistro;
· pelo salão passa uma carruagem puxada a cavalo e carregado de operários agrícolas a beberem vinho tinto. Também a essa passagem os convidados da festa se mostram totalmente indiferentes, demonstrando-se a sua incapacidade para ver o povo;
· um guarda florestal mata o filho à pancada suscitando algum sobressalto nesses convidados para os quais o amor pelas crianças constitui um imperativo canónico. Mas quando o assassino revela que a criança fizera-lhe tombar o cigarro que enrolava, todos aceitam a explicação e continuam na sua amena convivência.
O amor louco surge na cena em que as personagens rebolam na lama com uma excitação erótica traduzida pela violência com que mordem os lábios um do outro.  Ou na forma como o protagonista é interrompido na receção pela mãe da amante, que lhe vem oferecer um cocktail, e ele esbofeteia-a e atira-a ao chão.
Quando se trata de mostrar o erotismo, Buñuel opta por uma ilustração indireta: um homem preso vê um cartaz que sugere a amante. A cabeça de Lia Lys substitui essa cabeça. Quando a personagem expressa amor e desejo, vê-se a mesma Lia Lys sacudida por um estremecimento lúbrico e estendida no jardim. Há pois uma mediação fortuita dos amantes, que estão em permanente comunicação.
No seu argumento, Buñuel contou o que pretendia fazer: “na rodagem não interromper os gestos ou seja fazer com que os gestos dos personagens - beijos, contactros, etc. - se cumpram integralmente. Só na montagem se deverá fazer com que cada ato erótico dos personagens seja interrompido.”
A montagem também será fundamental no que diz respeito ao som: Lia Lys entra no quarto, encontra uma vaca na cama e expulsa-a dali. O badalo da vaca toca.
Na sequência seguinte, Gaston Modot é levado preso pelos polícias e ouvem-se cães a ladrar. O som do badalo persiste.~
Volta-se a Lia Lys, que vê nuvens a passarem pelo seu espelho. Ouve-se o vento, mas os sons precedentes, o do badalo e o dos cães, persistem, com os três sons sobrepostos a acompanharem os amantes no que significará a comunhão durante a sequência em que estarão separados.
Em suma, o filme tem uma originalidade revolucionária, quer na forma, quer no conteúdo, constituindo o paradigma da obra surrealista. 

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