E ao segundo dia de presença no Festa do Cinema Francês surgiu-nos «As Férias do Menino Nicolau», nova transposição do universo gráfico congeminado por Goscinny e por Sempé para o do cinema.
Encontramos o protagonista no final do ano escolar e na desejada chegada das férias. Único óbice para o miúdo: despedir-se da sua bela Edwige por quem sente um amor eterno como o são todos quando ainda se usam calções.
Em casa discute-se se devem ir para a montanha ou para a praia, mas por uma vez chegam a acordo, porque a negociação tem outra variável com que o pai de Nicolau não conta: ter de levar a sogra, que sempre o destrata, lembrando continuamente um antigo namorado da filha muito mais atraente e talentoso.
Fazendo recordar o maravilhoso filme de Tati sobre as férias do senhor Hulot, temos os personagens instalados no Hotel Beau Rivage nesse mesmo início da década de sessenta. E o mesmo propósito do realizador em recorrer aos estereótipos para melhor os criticar com recurso a gags mais ou menos divertidos.
Nicolau integra-se num grupo de novos amigos: Blaise, que não está de férias, porque vive ali todo o ano; Fructueux, que come tudo quanto lhe aparece à mão desde bombons até às pastilhas elásticas abandonadas por outrem; Djodjo, que não fala como eles por ser inglês; Crépin, que anda sempre a chorar e o irritante Côme, que quer sempre ter razão.
Mas o pior para Nicolau é conhecer Isabelle, que parece uma das miúdas fantasmas de «Shining», e só com olhos para ele. Se, à partida, se sente por ela assustado a ponto de tudo fazer para que nunca venha a com ela casar-se, Isabelle virá a ser o seu amor estival, capaz de o levar a esquecer Edwige.
Às tantas pomo-nos a conjeturar, porque será que não se vê um único negro no filme e se projeta uma tão notória nostalgia por um tempo idílico definitivamente desaparecido? E lembramo-nos de Amélie Poulain e o quanto esse universo de Montmartre fora tão idolatrado pela extrema-direita francesa.
É certo que, nem Sempé, nem Goscinny deram ideia de apreciarem Le Pen ou o que ele tem representado nos últimos sessenta anos. E muito menos Jacques Tati em cujo humor se parece querer filiar Tirard. Mas, uma coisa era olhar para os usos e costumes das férias dos anos 60 nessa mesma altura e criticá-los com sagacidade, e outra a reprodução dessas mesmas idiossincrasias para mero exercício nostálgico sobre algo, que se gostaria de recuperar.
É fácil imaginar muito do eleitorado da Frente Nacional francesa a ver o filme e a suspirar de saudade por um tempo em que todos eram bonitos e gentis, sem os incómodos de uma miscigenação que aterroriza quem se julga em perigosa perda de identidade.
Em si o filme vale como um divertimento conseguido, que faz sorrir, mais do que rir, e com uma cenografia irrepreensível. Mas, numa altura em que marine le pen tem sérias possibilidades de vir a suceder a Hollande no Eliseu não deixa de ser equívoca esta oferta da imagem de uma França utópica para os mais racistas dos franceses.
Na semana em que se cumpriu o 50º aniversário da Mafalda de Quino, que provou ainda estar muito atual, o menino Nicolau arrisca-se a ser visto como uma curiosidade de museu, tão diferentes são os valores de hoje com os por ele testemunhados.
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