Nos textos anteriores víramos que a trilogia «1Q84» tem dois protagonistas principais: Aomame, uma assassina a soldo que mata de forma quase indolor todos quantos a sua cliente considerava violentos agressores das respetivas esposas, e Tengo, um escritor sem livros publicados, contratado para reescrever um romance enviado para um concurso literário por uma estranha adolescente.
Víramos que Aomame concretizara mais uma das suas missões, que servira para definir o tipo de homem passível de ser por si assassinado: “ É um padrão que se repete com frequência. O homem costuma ser competente na sua área, com prestígio, de boas famílias e estudos académicos. Sem esquecer o nível social elevado. (…) Mas depois, ao chegar a casa, transforma-se por completo. (…) Sobretudo no caso dos que bebem álcool e se tornam violentos. Se bem que estes homens só utilizem a força bruta contra as mulheres. Só se viram contra as esposas. Aos olhos de toda a gente, mostram apenas o lado agradável. À sua volta, consideram-nos homens de família dedicados e amantíssimos. Quando a mulher tenta dizer às pessoas as coisas terríveis que ele lhe fez e os maus-tratos de que é alvo, ninguém acredita nela.” (pág. 143)
Mas também acontecia algo de inesperado: tudo quanto correspondia aos padrões de normalidade de quanto via à sua volta, começava a alterar-se sem ela compreender porquê: “Por dentro, onde ninguém a podia ver, sentia-se confusa. Estavam a acontecer demasiadas coisas que escapavam ao seu controlo, sobre as quais não possuía qualquer informação. Ainda não há muito tempo tinha o mundo nas mãos, sem fracassos nem contradições. Naquele momento, porém, começava tudo a desmoronar-se.” (pág. 148)
Por seu lado Tengo iniciara a concretização da encomenda, que não lhe suscitara grande entusiasmo, mas ela até avança com maior rapidez do que julgara possível: “No início tudo correu sem espinhas. O estilo de Fuka-eri era tão básico! Aos poucos, Tengo deu-lhe uma outra consistência lógica, o ponto de vista tornou-se mais conseguido e, por conseguinte, a obra passou a ser lida com outra desenvoltura. Ainda assim, a narrativa no seu todo, teimava em arrastar-se. A lógica aflorava por demais à superfície e tendia a ofuscar o engenho patente no original.” (pág. 118)
Mas, a exemplo da protagonista feminina, também ele estranha as novas informações que Fuka-eri lhe vai transmitindo: “Naquele dia, uma bela manhã domingueira de meados de abril, tinham vindo à luz alguns factos e não podia dizer que fossem muito agradáveis. Em primeiro lugar, Fuka-eri não escrevera «A Crisálida de Ar» pelo próprio punho. Se fosse a dar valor ao que ela lhe contara (…) Fuka-eri limitara-se a contar a história, e a outra rapariga [Azami] tratara de a passar para o papel. (…) De certa maneira, este facto serviu para diminuir um pouco o sentimento de culpa que sentia por corrigir «A Crisálida de Ar», ao mesmo tempo, porém, só vinha tornar a situação mais complicada, e não via maneira de a desenredar de tais dificuldades.” (pág. 164)
Ainda este primeiro volume não chegou a meio e temos Aomame e Tengo a partilharem o desconforto por se verem enredados em circunstâncias, que escapam à mais elementar lógica e para as quais não sabem como reagir.
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