Confesso que a moda nunca foi propriamente a minha onda. Uma vez, por motivos profissionais, tive de assistir a um desfile e vi-me a adotar o olhar do antropólogo, que escalpeliza os comportamentos ritualizados de uma sociedade alienígena, em vez de apreciar as propostas dos criadores com a seriedade dos que ali iam acompanhando a passagem dos manequins.
Tenho de reconhecer que sempre encarei esse fenómeno com a mesma arrogância de um jovem deputado comunista, que desvalorizava ainda há pouco tempo o aquecimento global como arma de manipulação ideológica do sistema capitalista para pôr em causa a necessária industrialização da nossa sociedade. A minha lógica esquerdista apontava para a indústria da moda como a forma dos sistema alienar a juventude, e particularmente as mulheres, reduzindo-as ao papel de um título do cinema francês de há quarenta anos: «Sê bela e cala-te!».
Há uns quantos anos esse preconceito começou a vacilar. Primeiro com a coleção de design de Francisco Capelo, inicialmente descoberta no CCB e depois transitada para o MUDE. Posteriormente, com os museus Victoria & Albert em Londres ou o Metropolitan de Nova Iorque, qualquer deles com excelentes coleções dedicadas à moda.
Em suma: ainda estou longe de me imaginar anualmente a comparecer na Moda Lisboa - que continuo a ver com a mesma distância das Galas da SIC ou da TVI - mas já enquadro de bom grado a apreciação estética de muitos dos criadores desta área numa das vertentes da arte contemporânea.
É nesse sentido que vi o filme de Lisa Immordino Vreeland com uma grande curiosidade inicial e um progressivo espanto pela personalidade admirável da sua biografada. De facto, Diana Vreeland (1903-1989) correspondeu bem àquilo a que os norte-americanos designam como um «character». E que carácter!
Personalidade fora do comum, tão excêntrica quanto brilhante, ela reinou durante 55 anos no mundo da moda, impondo nele a sua noção de estilo e criando tendências, que revolucionaram o gosto de sucessivas gerações.
«The Eye Has to Travel» não se limita a desenvolver o retrato íntimo de uma das mulheres mais excecionais do século XX, um verdadeiro ícone que mudou tudo quanto até aí eram os padrões da moda, da arte, do jornalismo e da cultura em geral.
Ela foi a principal redatora do “Harper’s Bazaar» entre 1936 e 1962, mudando-se depois para a «Vogue» até 1971. Em ambas as revistas foi genial como revolucionou a forma de olhar para o que deveria associar-se a uma perspetiva moderna da aparência feminina. E, quando os orçamentos começaram a minguar, tornou-se curadora do Metropolitan de Nova Iorque, organizando aí exposições de referência sobre o trajar em diferentes épocas da História da Humanidade.
Ela quis ser eternamente jovem até ao último dos seus dias. Por isso mesmo tanto admirou o vanguardismo dos Ballets Russes dos anos 20 como a música dos Beatles ou dos Rolling Stones na década de 60.
Até quando sofreu a perda do homem com quem esteve casada durante quase meio século a sua aposta consistiu sempre em olhar para o lado e fixar-se nos seus conceitos de beleza.
Este documentário realizado pela esposa de um dos seus netos não teme avançar com algum mimetismo para com o seu tema: nele se celebra a festa permanente das aparências sem dar qualquer importância ao lado obscuro desse mundo, que se traduz amiúde numa certa vampirização de quem o representa.
Mas, que importa? Com Diana Vreeland enfatiza-se o seu lado mais luminoso, aquele em que o chique e o choque eram permanentes para se conseguir combater o tédio com sucesso. É que para Diana Vreeland a provocação também estava sempre na ordem do dia ou não fosse da sua lavra a expressão: “O bikini é a coisa mais importante desde a invenção da bomba atómica”. Porque, apesar de já ter chegado à condição de sexagenária, quando ele irrompeu na moda internacional, Diana já percebera como as inovações nas passerelles sempre anteciparam revoluções mais vastas nos comportamentos políticos e sociais das sociedades.
Foi a ela que se deveu a consagração de muitos criadores de moda (Yves Saint Laurent, Valentino) ou de top models (de Lauren Bacall a Twiggy ou a Marisa Berenson) sem esquecer a influência na indumentária de Jacqueline Kennedy de quem foi amiga.
Graças ao seu instinto impôs a sua extravagância, ideias inovadoras e o gosto pela experimentação. No fundo o documentário é uma magnífica lição da História do Século XX por uma perspetiva a que não estávamos habituados e com imagens de arquivo e testemunhos até agora inéditos.
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