quarta-feira, outubro 11, 2017

(S) Uma banda surpreendente no meu Verão do Amor

Em 1967, naquele que viria a ser crismado como o Verão do Amor («Summer of Love»), eu tinha acabado de fazer onze anos e percebia muito pouco do que se passava à minha volta.
Das meninas quase era um ignorante, apesar de ter uma irmã cinco anos mais velha. Era o tempo em que elas e nós nunca nos encontrávamos na escola, seja porque nos separavam muros intransponíveis, seja porque os reitores e diretores cuidavam de nos divergir nos horários. Com as hormonas em alta fazíamos a catarse nas futeboladas onde as sarrafadas até ferviam. Terá sido por essa altura que o José Júlio, um colega insurgido pelas minhas persistentes caneladas, fez-me proferir a expressão mais misógina de quantas alguma vez saíram dos meus lábios: «O futebol não é para meninas!»
Da política também pouco compreendia, apesar do padre Sobral lançar a dúvida sobre os benefícios de vivermos num mundo ainda focalizado no tal Salazar, sobre a qual a minha mãe dizia, em surdina, ter o costume de pôr gente a ouvir o que dizíamos, razão porque teríamos de ter cuidado para não sermos levados como o Mariano, que nunca mais houve quem lhe pusesse a vista em cima depois dos pides o virem buscar numa turbulenta madrugada.
Desconfio que a minha mãe tinha razão para o alerta, porque a atividade do cunhado nos cafés e nas tabernas da aldeia não seria apenas explicada pela sua proclamada preguiça. E as atividades clandestinas tinham campo fértil para um espaço em vias de se tornar no dormitório dos alentejanos, recentemente instalados à beira Tejo para servirem de operários nas fábricas dos dois lados do rio.
Foi por essa altura que ouvi pela primeira vez «Strawberry Fields Forever» e «Penny Lane». O meu parco inglês não dava para perceber que se tratavam de temas compostos por Lennon e McCartney  a evocarem cenários das respetivas infâncias, mas logo os adotei como dos meus favoritos de então. Ademais, se lá em casa, o meu pai vituperava esses gadelhudos, maior razão tinha para os admirar. O conflito de gerações já estava a manifestar-se e tinha uma linha orientadora incontornável: se pai e mãe defendiam alguma coisa, eu tinha obrigatoriamente de acreditar na validade dos pressupostos contrários.
Desconhecia, igualmente, que esses dois temas anunciavam a obra essencial, que os quatro de Manchester e George Martin, estavam a compor nos estúdios de Abbey Road e lançado nessa mesma altura. O «Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band». Quando isso aconteceu iniciei as férias de verão a entoar a música de «Lucy in the sky with diamonds», enquanto os israelitas davam uma coça monumental nos egípcios, nos sírios e nos jordanos. Como lá por casa eram eles os heróis, tomei de ponta o homem da pála, que associei a um pirata, coadjuvado por aquela velha diretamente saída das piores megeras das estórias de Hollywood.
Foi todo esse passado de há cinquenta anos, que regressou à mente enquanto via o excelente documentário de Francis Hanly sobre a Revolução musical que o álbum significou. Porque, se hoje as conceções então imaginadas, e criadas em estúdio, seriam uma mera brincadeira, na época não existia tecnologia, que pudesse corresponder ao que Martin e os quatro Beatles pretendiam criar.
A própria estratégia de composição ali testada devia muito mais à intuição de Lennon, McCartney e Harrison do que às competências, que pudessem ter, apesar de aplicarem com desenvoltura o contraponto de Bach, a experimentação dos contemporâneos John Cage ou Stockausen ou o universo modal da música indiana.
Com notável competência e talento, o apresentador, Howard Goddall, explica ao piano a forma como os compositores serviram-se dos que os influenciavam para criarem sons inovadores, capazes de ecoarem em nós com um impacto até então desconhecido.
O meu entusiasmo com os Beatles não foi muito além desse verão. Outras propostas viriam ganhar o espaço de afeição que então lhes dediquei. Gente como os Doors, os Crosby, Stills, Nash & Young, Simon & Garfunkel ou Leonard Cohen tornavam-se prioritários, quando se tratava de comprar LP’s. Mas esse Verão do Amor contribuiu em muito para atentar com perspetivas mais alargadas quanto ia vivenciando. Decididamente estava a crescer a olhos vistos... 

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