segunda-feira, outubro 02, 2017

(DL) Quando um cego não quer ver

W.G. Sebald dedicou uma trintena de páginas a dar-nos a conhecer Alfred Andersch, um escritor alemão, que viveu entre 1914 e 1980 e se considerava genial. Algo comparado com a forma como Tim Burton pôs Johnny Depp a fazer de Ed Wood, com a diferença de a este escassearem os recursos e ambicionar grandes projetos cinematográficos sem ter dinheiro para cantar um cego, enquanto a Andersch faltava nitidamente o talento para alcançar a qualidade literária, que julgava ser capaz de produzir. Daí que sentisse irreprimíveis iras, quando se via contemplado com críticas negativas.
Mas não era só a falta de talento, que estava em causa: ele quis criar de si um passado antinazi, que não se ajustava à veracidade dos factos. Procurou heroicizar-se por ter desposado uma mulher de ascendência judia, mas não enjeitara dela divorciar-se em 1942, quando pretendia ver facilitado o acesso ao organismo nazi, que ajuizaria se os seus romances seriam ou não publicáveis. Ainda que essa desventurada esposa tenha escapado ao Holocausto, a sogra morreria em Theresienstadt.
Resultam, pois, falsas as caracterizações que de si alimenta nos romances, que lhe servem para a catarse da cobardia:  descreve-se como teria desejado ser e não como se comportara na realidade.
Desmascarado, refugiar-se-ia na Suíça onde viveria os últimos vinte e oito anos, tornando-se amigo de Max Frisch, que não deixaria de reconhecer ser aquele o sítio ideal para o seu retiro por não «lhe dar nenhum trabalho», no sentido do escrúpulo, da moralidade.
Sebald apresenta o escritor como o exemplo demonstrativo da sua tese sobre a incapacidade dos autores alemães do pós-guerra em descreverem os horrores por que tinham passado, quando os Aliados reduziram a escombros a s cidades onde viviam.
Não quisesse Andersch dar uma imagem distinta de si mesmo, não lhe teriam faltado experiências de vida suficientemente impressivas para lhe servirem de fundamento aos romances.  Mas essa característica é muito frequente nas mais variadas culturas. Numa excelente série, que acabei de ver - «I’m dying up here!» - o personagem Ron estragava as relações de afeto e a hipótese de ser bem sucedido enquanto comediante de stand by comedy, porque não conseguia superar a frustração de se encarar como realmente era. Isso na Los Angeles de 1973, precisamente na altura em que Andersch ruminava o seu fracasso enquanto envelhecia sem alcançar a consagração a que se julgaria com direito.

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