domingo, outubro 22, 2017

(DL) Coisas de livros (III): Alice Brito, Mega Ferreira e Dubravka Ugrešić

(1) Uma das iniciativas regulares da Associação Gandaia, da Costa da Caparica, consiste em convidar um escritor  a apresentar obra recém-publicada perante a interessada audiência, que costuma acorrer a tais sessões. Nos últimos meses temos tido o privilégio de debater com Ana Margarida de Carvalho, Isabela Figueiredo, Valério Romão, Cristina de Carvalho entre muitos outros autores, que seria fastidioso aqui enumerar.
Na próxima quarta-feira a convidada é Alice Brito, que vem falar do seu romance «O Dia em que Estaline encontrou Picasso na Biblioteca». Entre Setúbal e Barcelona equacionam-se as utopias, que assinalaram os acontecimentos mais relevantes do século transato e os equívocos com elas relacionados. Temos personagens fortes, que conheceram a fome, a luta e a repressão, mas também a inquebrantável vontade de tudo transformar. E quem já o leu não poupou nos elogios para com uma história capaz de agarrar o leitor de fio a pavio.
No dia 25 de outubro pelas 21.30 está assim prometida mais uma estimulante noitada no Auditório do C.C. O Pescador. O convite fica aqui replicado para quem se disponha a passar um par de horas bem mais interessante do que acompanhar as parvoíces do José Gomes Ferreira na SIC.
(2) Nunca fui grande entusiasta da pintura abstrata apenas focalizada nos jogos das formas ou da cor. Se aprecio Malevich, Mondrian ou Rothko não é tanto pela beleza estética, mas por almejarem propósitos vanguardistas em rutura com os cânones anteriores.
Detesto o conceito da «arte pela arte», orgulhosamente assumida como superior nas intenções à que procura caução política, social, até mesmo religiosa.
Vem isto a propósito da viagem a Itália de António Mega Ferreira e da sua paragem em Bolonha para, entre outras razões, visitar a casa onde vivera o pintor Giorgio Morandi. Anos antes a apreciação indiferente da sua obra fora surpreendida pelo efeito suscitado numa retrospetiva das suas naturezas mortas e paisagens. Vistas em conjunto essas obras, quase todas semelhantes, porque tomavam por tema os mesmos motivos, tinham-no feito compreender a razão porque Morandi costumava percorrer o jardim da moradia com binóculos para ver aquilo que, a olho nu lhe escapava. Como se, para além do que estava mais acessível à sua atenção, houvesse todo um mistério por explorar. Daí a questão do que verdadeiramente se escondia por trás das mesmas jarras ou da mesma paisagem: mais do que a sua aparência, que mistério se ocultaria nas suas formas e cores?
(3) “A vida não passa de um álbum de fotografias. Só o que está no álbum existe. O que não está no álbum, nunca aconteceu.”
Dubravka Ugrešić conta a respeito desta frase do seu «O Museu da Rendição Incondicional» uma estória elucidativa: embora não apreciasse a fotografia por aí além decidiu comprar uma máquina barata para registar a iminente viagem ao estrangeiro. Quando regressou a casa tinha vários rolos com o que lhe parecera mais interessante captar. O paradoxal foi compreender que, tempos depois, quando recordava essa experiência só conseguia lembrar-se das coisas que fotografara, tendo-se apagado da memória tudo quanto deixara escapar à objetiva.
Mais adiante ela considera que “uma fotografia é uma redução do mundo infinito e intangível a um pequeno retângulo. Uma fotografia é a nossa medida do mundo. Uma fotografia é também uma memória. Recordar significa reduzir o mundo a pequenos retângulos. Ordenar os pequenos retângulos num álbum é autobiografia.”
A evidência dessa ilação aconteceu-lhe da primeira vez em que se viu a percorrer as ruas de Nova Iorque e, ao contrário do que esperava, nada sentia de extraordinário dentro de si. No entanto tudo mudou quando apanhou um táxi, cujo condutor tinha o rádio a transmitir música em som significativamente alto e as ruas começaram a desfilar perante si no para-brisas do carro.  Como se carecessem dessa tradução através de um aparente ecrã para ganharem um impacto mais próximo do expectável...

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