quinta-feira, outubro 05, 2017

(EdH) Um general a ser reavaliado como humanista, mais do que como o político inábil que foi

Não deixa de ser irónico ver de seguida o documentário do Edgar Feldman dedicado à personalidade do general Vasco Gonçalves e a seguir um episódio da mais recente temporada de «The House of Cards». Porque não pode haver maior contradição entre a Política vivida com elevados padrões éticos e a que resulta de jogos calculistas entre gente narcísica, mais apostada em satisfazer os seus interesses pessoais e de quem lhes financia a atividade politiqueira do que os do povo supostamente foco da sua preocupação.
E, no entanto, em 1975, quando o general cai na sequência do Documento dos Nove e do discurso de Almada, o meu esquerdismo levava-me a senti-lo do lado oposto do sentido da História tal qual eu desejava, que ela prosseguisse. Ou, agora mesmo, fiz quanto estava ao meu alcance para substituir a esgotada vereação da CDU nesse mesmo concelho pela sua alternativa socialista. O que não me impede de reconhecer as qualidades admiráveis daquele que foi primeiro-ministro de quatro governos provisórios depois do 25 de abril.
Nessa época conheci gente assim: recordo um professor da Escola Náutica de Paço d’Arcos, que nos falava deleitado do 25 de abril, acabado de acontecer, como a oportunidade para vivermos num mundo novo onde seríamos mais iguais e o mérito de cada um seria reconhecido. Que desilusão deve ter sentido quando, após o 25 de novembro de 1975, terá constatado como tudo tenderia a voltar ao mesmo, ou seja a um mundo dividido entre classes sociais com uma delas a prevalecer em força, e em recursos, sobre a grande maioria dos que se distribuem entre os pobres, a pequena burguesia e a média burguesia. Porque não há que ter rebuços com a utilização destas designações: a classe dominante - a dos banqueiros, a dos donos dos hipermercados e de outros centros de criação de autoenriquecimento, que os colocam ano a ano a distribuírem-se entre os mais ricos de Portugal (e sempre com essa acumulação de capital a crescer!) - procura omitir da terminologia usada publicamente, porque oriunda do Marxismo, que julga poder aniquilar enquanto método de análise das nossas sociedades. Em vão, porque tal como as teorias de Einstein vão sendo comprovadas sucessivamente à medida que as condições práticas as podem sujeitar à sua aferição, também as futuras circunstâncias sociais, económicas e ambientais, voltarão a dar o ensejo para novas experiências, passíveis de demonstrar a iminente substituição deste crepuscular sistema económico, por outro mais justo e racionalmente igualitário.
No documentário do Edgar Feldman, pessoas tão diferentes como Basílio Horta, Pezarat Correia ou Correia Jesuíno, são unânimes na admiração pelo trato cordato de Vasco Gonçalves e pela sua irrepreensível integridade, que a investigadora Manuela Cruzeiro tanto valorizou no ensaio a ele dedicado. Incapaz de mentir, de ser desleal e de acreditar profundamente na tradução prática da sua utopia, ele foi destratado, difamado por quem da política tinha um outro sentido mais calculista, podemos até considerar frankunderwoodiano. E, nesse sentido, heróis da Revolução, entretanto muito consagrados como mais conformes com a realidade geopolítica da Europa Ocidental em 1975 - Melo Antunes, Otelo Saraiva de Carvalho, e por omissão, o próprio Mário Soares - não saem bem deste balanço distanciado, mais objetivo do que emotivo da História desses anos de brasa.
Que a sociedade criada de acordo com o sonho de Vasco Gonçalves não seria bonita de se viver, naquele específico momento histórico, muitos exemplos trágicos de outras Revoluções o demonstram. Mas há que reconhecer terem sido os seus governos a concretizarem a imposição legal de um vasto leque de direitos para os trabalhadores e para a universalidade dos cidadãos nacionais, que os sucessivos governos das direitas, e alguns do meu Partido Socialista se encarregaram de cercear tanto quanto puderam. Sempre para satisfazerem os suspeitos do costume…
Do Homem importa resgatar quem, efetivamente, foi: um humanista empenhado, apostado na realidade alternativa em que o poder seria genuinamente do povo e governantes e governados remariam em uníssono para a mesma direção: a do tal Socialismo que, na época, todos os partidos, desde o PCP ao PPD de Sá Carneiro se diziam comprometidos a alcançar.

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