quarta-feira, outubro 18, 2017

(DIM) Andrei Tarkovsky ao espelho

No ciclo de cinema dedicado à comemoração do 100º aniversário da Revolução de Outubro é uma feliz coincidência sucederem-se dois filmes em que o protagonista não se vê, porque os seus olhos são os da câmara, incumbida de nos transmitir a sua narrativa.
Na semana passada vimos o realizador Alexander Sokurov a conduzir-nos através dessa «Arca Russa», que não era mais do que o atual Museu Hermitage, edifício de grande importância no acontecimento histórico agora em questão, por ter sido o símbolo da vitória bolchevique, quando ainda se denominava Palácio de Inverno. Durante noventa e seis prodigiosos minutos de um mesmo plano-sequência acompanhávamos alguns dos mais relevantes episódios da História Russa desde a criação da cidade de São Petersburgo por Pedro, o Grande, até à atualidade, com Valery Gergiev a dirigir a orquestra do Teatro Mariinsky.
Agora temos Andrei Tarkovsky a guiar-nos numa prodigiosa aventura sensorial, que a revista Sight & Sound não hesitou em classificar nos dez melhores filmes de todos os tempos. Numa entrevista o realizador esclareceu que “tinha decidido, neste filme e pela primeira vez, usar os recursos do cinema para falar de todas as coisas que me eram mais queridas, e que iria fazê-lo diretamente, sem usar quaisquer truques”.
Embora «O Espelho» fosse rodado em 1975, entre dois dos seus maiores êxitos («Solaris» e «Stalker»), Tarkovsky estava plenamente convencido que o cinema comercial era, com a sua desonestidade, o culpado pelo enfraquecimento da consciência do público. Por isso reconheceu ter sido “extremamente difícil explicar às pessoas que não há nenhum significado oculto no filme, que não há nada além do desejo de dizer a verdade”.
Essa é a dificuldade com que os espectadores podem começar por se confrontar: a montagem não obedece a uma lógica narrativa, porque respeita prioritariamente o que acontece nas cabeças, quando tentamos compreender a associação das ideias. Compreendemos que, pensando no passado, vemo-lo feito de recordações e sentimentos.
Daí que a estrutura do filme seja descontínua, não seguindo uma lógica cronológica, nem um enredo convencional. A exemplo da coca-cola de Fernando Pessoa, primeiro estranha-se, depois entranha-se a tal ponto que, quem se deixar conduzir pela sedução encantatória do filme, acaba por dele colher aquilo que muitos outros já confessaram com ele ter encontrado: um inexplicável fascínio.
Alexei, o alter ego do realizador, é um homem moribundo com cerca de quarenta anos, que faz o balanço do passado desde a infância até essa altura, recorrendo a sucessivos flash backs e filmes de arquivo. Revisitamos, pois, as suas memórias antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial e a pena de não ter conseguido ser tão dedicado à família quanto desejara ter sido. Tarkovski faz, aqui, o seu testamento, ainda que só viesse a falecer onze anos depois, com apenas 54 anos, e recorre para isso aos pais: a mãe faz o papel da idosa Maria e o pai declama poemas da sua própria autoria. Faz, pois, uma homenagem às origens e aos sítios onde cresceu, sem nada pretender ensinar ou insinuar, antes desafiando os espectadores para, assistindo a estas memórias, resgatarem também as suas.
Os críticos dedicaram-se a decifrar muitos dos significados possíveis de outras tantas cenas do filme, mas viram-se perdidos num autêntico labirinto. O verdadeiro fito de Tarkovski surgia explicito nos seus proclamados objetivos:  “uma verdadeira imagem artística oferece ao expectador uma experiência simultânea dos sentimentos mais complexos, contraditórios e, por vezes, mutuamente exclusivos”.
Podem-se, porém, relevar a presença dos espelhos, que surgem por todo o lado numa singular conexão com outro filme recentemente exibido no Cineclube Gandaia («Relatório Minoritário» de Steven Spielberg), onde também alertáramos para a importância do acessório que dá título ao filme. Numa cena insuportavelmente longa, o filho de Alexei olha-se a si mesmo durante um minuto e vinte segundos. Mas, para além de se tratar de um filme sobre a importância de nos equacionarmos no que somos e fomos, ele tem nos espelhos o pretexto para mudar os planos do presente para o passado, da realidade para o sonho e vice-versa.
Questionar-se-á, porque razão escolhemos este filme para um ciclo sobre a Revolução Russa e daremos só duas razões: apesar de apelar para o coletivo, o regime soviético nunca conseguiu impedir os cidadãos de alimentarem, e orgulhosamente darem substância, ao que comummente se costuma designar como «alma russa». Não terá sido essa preservação da identidade individual uma das causas primitivas para a sucessiva deriva do regime para algo totalmente contrário do que deveria ser a sua pretendida revolução económica e social com a da preservação das liberdades fundamentais? Daí aquela cena elucidativa em que a mãe de Alexei comete um erro no seu ofício de revisora de imprensa, ao enganar-se a escrever Stalin, substituindo-o por «shralin» (excremento), e se a situação a diverte, também a atemoriza pelo que poderia colocar em risco a própria vida.
A segunda razão tem a ver com o facto de o regime bolchevique ter propiciado uma prodigiosa revolução artística nos seus primeiros anos, dando origem a novas estéticas na literatura, na música, no cinema ou nas demais artes visuais. Por muito que se sentisse desenquadrado do tipo de sociedade em que nasceu e desenvolveu quase toda a sua filmografia, Tarkovsky é um lapidar exemplo de como a tradição soviética possibilitou a expressão do genial talento de muitos dos seus intelectuais.

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