sábado, outubro 14, 2017

(P) Adoecer numa sociedade líquida

Sempre que revisito o espaço do Teatro O Bando no Vale dos Barris vou à espera de reencontrar o efeito jubilatório que o grupo me ofereceu com duas das suas peças, que nunca mais poderei esquecer: «Ensaio sobre a Cegueira» e «Quarentena»
Se a primeira adaptava o romance de Saramago e expunha cenograficamente na perfeição esse mundo de cegos onde ver resultava numa quase maldição por quanto significava ter outro nível de consciência quanto a iniquidade estabelecida entre quem oprimia e quem era oprimido, a segunda peça, revelada em 2015 naquela obscuridade criada pelo diktat de Passos Coelho, que já temíamos não ter fim, dava-nos (numa das duas versões possíveis!) a convicção de um tempo novo por chegar.
Numa altura em que ando a ler Zygmunt Bauman e dele retenho a mensagem testamentária de se explicar o Brexit e a vitória de Trump como consequências de décadas de consumismo, ando ávido de Política, preciso de estímulos incisivos para que possa refletir mais aprofundadamente como aqui chegámos e como daqui poderemos repartir para caminhos mais aproximados às nossas Utopias.
Aparentemente «Adoecer» na versão que Miguel Jesus criou a partir do romance de Hélia Correia não se exime a essa possível leitura, mas concretiza-a de uma forma ensimesmada. Paradoxalmente fazia mais sentido esta peça durante o período governativo anterior do que neste, onde a mensagem final da tal versão solar da «Quarentena» se enquadraria bem melhor.
A estória narrada por Hélia Correia projeta-nos para a segunda metade do século XIX, quando o ar de Londres era doentio por causa do fumo das fábricas e o Tamisa mais parecia um cano de esgoto a céu aberto. Não admira que a doença, as epidemias, constituíssem um risco suficientemente sério para justificar a fragilidade dos seus artistas. Entre eles estava Elizabeth Siddal, que servia de modelo aos pintores da fraternidade pré-rafaelita, mas também escrevia poemas e pintava.
A relação com Dante Gabriel Rossetti ficaria registada como um daqueles casos excessivos, em que o Amor já não é sentimento, mas constitui em si uma doença. Desaparecida precocemente, Elizabeth alimentaria mitos a respeito do seu cadáver incorrupto em cujo couro cabeludo prosseguia o crescimento dos seus cabelos ruivos.
Sem corresponder às interrogações mais diretamente políticas do nosso tempo, o texto remete para a condição feminina, demasiado sujeita à volubilidade e ao egoísmo dos parceiros masculinos.
Para concretizar o projeto cénico elaborado no papel a peça contou com quatro argumentos, que a tornaram numa belíssima proposta estética. Em primeiro lugar a tradução de muitas das palavras pelo movimento coreográfico dos dois bailarinos– protagonistas. Como escrevia a própria autora do romance no programa, a opção pelo bailado libertou o texto de si mesmo. Nesse sentido «Adoecer» é um híbrido entre o teatro convencional e a dança, com ambas as linguagens a interligarem-se como se de duas peças de uma mesma máquina se tratassem.
Há depois a excelente interpretação de todos os atores sem exceção e independentemente da dimensão do papel que lhes cabia. Algum histrionismo excessivo poderá ter surpreendido, mas acaba-se por o entender enquanto expressão de uma época ela mesma excessiva.
Os cenários, o guarda-roupa, os adereços e os movimentos dos corpos em cena constituem outro dos argumentos para a nossa rendição ao espetáculo, porque há pormenores esteticamente tão belos, que quase desejaríamos parar o tempo naquele instante e dedicarmos maior atenção ao quadro em que os movimentos ficariam congelados à nossa frente.
E acresce ainda uma componente das propostas de O Bando, que se revela sempre fundamental para a criação de uma atmosfera muito sua característica. Falo da partitura musical criada por Jorge Salgueiro para acompanhar os momentos mais impressivos. Como de costume sentiu-se a influência minimal repetitiva de Philip Glass, mas com ruturas estranhas a lembrarem o efeito conseguido com o desempenho de Fernando Ribeiro na peça «Saga». Que pena não dispormos da gravação de muitas das peças orquestrais que o compositor tem criado na sua já longa colaboração com o grupo.
Há que reconhecer que não obtive com «Adoecer» um efeito tão categórico como o verificado com aquelas duas peças exemplares, que comecei por recordar. Mas criações de João Brites e seus colaboradores nada têm a ver com aquela rendição aos valores líquidos, que Bauman aponta como os causadores do nosso incauto afastamento dos propósitos transformadores das sociedades em que vivemos.

Sem comentários: