quinta-feira, outubro 19, 2017

(DL) Coisas de livros (II): António Mega Ferreira e as suas viagens por Itália

1. No prefácio de «Itália - Práticas de Viagem», António Mega Ferreira  cita uma frase de Péter Esterházy, que faz, hoje, todo o sentido: “o turista não viaja, apenas muda de lugar”.
A viagem é algo de demasiado sério para ser equiparado ao que fazem as hordas despejadas diariamente dos gigantescos paquetes chegados a porto e logo encarneiradas para excursões pré-definidas, onde o objetivo é chegarem-se a alguns monumentos ou paisagens idílicas e aí tirarem selfies  a fim testemunharem para a posteridade o terem ali estado. Ou os que chegam a uma cidade, hospedam-se num hotel ou pensão, e só ousam dirigir-se aonde os seus guias de viagem recomendam que se vá.
No tempo de Goethe, que publicou um memorável relato da sua viagem por Itália entre 1786 e 1788, o objetivo era descobrir-se descobrindo, como se a permanente novidade estimulasse lugares recônditos do seu ser, dessa forma trazidos para a superfície. Era suposto que o viajante viesse a revelar-se melhor pessoa ao conhecer-se bem melhor do que antes.
Os turistas de hoje mudam de lugar, porque já trazem as cabeças formatadas nas suas certezas e nada as alterará. A viagem é um objeto de consumo, que se mastigue e deita fora sem que questione, impressione, deslumbre ou intimide quem a vive.
Estamos na era dos turistas quase sem espaço para que, entre eles, cirandem os viajantes.
2. Trieste é muita coisa, mas ficou conhecida por ser o ponto de encontro, ou de desencontro, das culturas existentes à sua volta. Todas desejosas de reterem para si o importante porto de acesso ao que se designou como Mitteleuropa.
Em 1914 um arruinado James Joyce chegou ali para se candidatar ao modesto posto de professor de uma escola de línguas, que lhe valeria o ordenado suficiente para sustentar a mulher e os dois filhos. E ficou amigo para a vida de Italo Svevo, um homem abastado com tanto talento para a escrita como falho de confiança quanto ao seu sucesso. Ao contrário do irlandês a quem não faltava prosápia quanto à sua genialidade, mas não conseguia quem o publicasse.
Nos catorze anos seguintes, mesmo com Joyce já estabelecido em Zurique, os dois homens mantiveram uma contínua ligação epistolográfica até Svevo espatifar-se com o automóvel e privar o amigo do seu nunca regateado apoio.
3. Mega Ferreira sente um fascínio inesgotável por uma tela de Carpaccio, datada de 1496, que revela bem a sofisticação, que estava a apossar-se de Veneza. A Ponte do Rialto ali representada, ainda era feita de madeira, não oferecendo qualquer segurança. Poucas décadas depois já ela era em pedra, subsistindo como tal até aos nossos dias. Mas há no quadro em causa a sensação de espreitar-se para um passado, que nunca será de nós conhecido.
4. Tintoretto e Ticiano eram rivais dado diferenciarem-nos as classes sociais originais. O primeiro era filho de um artesão, enquanto o segundo convivia com os poderosos, monopolizando-lhes as encomendas. E, no entanto, além de ser muito rápido a concluir as encomendas, dever-se-ia ao primeiro uma renovação substantiva dos métodos de trabalho e nos cânones estéticos da arte pictórica. Mas sabemos bem como os irreverentes não costumam ter vida fácil…

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