sábado, outubro 21, 2017

(DL) O véu negro de Nathaniel Hawthorne

Em 1832 Nathaniel Hawthorne publicou «O Véu Negro» («The Minister’s Black Veil»), que depois surgiu com frequência nas antologias com as suas histórias mais curtas.
No início temos o sacristão a tocar os sinos da igreja de Milford, na puritana Nova Inglaterra, para o serviço religioso. Mas logo estaca surpreso, num sentimento logo partilhado por todos quantos para ali acorrem: o reverendo Hooper surge-lhes com um véu preto semitransparente a obscurecer-lhe os olhos, só deixando a boca e o queixo à vista.
Enquanto se dirige ao púlpito todos especulam sobre o significado daquela singular forma de se apresentar, mas ele parece querer corresponder-lhes através da prédica sobre supostos «pecados secretos». De quem: dos paroquianos? Dele próprio? Ninguém arrisca juízo definitivo embora tudo aponte para a natureza pecaminosa inerente a todos as pessoas. Nesse mesmo dia, oficiando um funeral durante a tarde e um casamento noite adentro, Hooper não se desfaz da nova indumentária, mesmo que pareça assombrar a futura felicidade dos noivos com tão anódina postura.
A teimosia de Hooper quanto à intenção de nunca mais se livrar do véu resiste à própria noiva, Elisabeth, que tenta demovê-lo, primeiro com jovialidade, depois mais a sério, quando, derrotada, se vê forçada a romper o noivado. Muitos anos decorrem, já com todos os crentes do povoado a aceitarem placidamente a originalidade de pastor. “Por fim, a morte atingiu aquele homem que descansava num torpor mental e exaustão física, com pulso impercetível e uma respiração cada vez mais leve, exceto quando uma longa e irregular inspiração pareceu ser o prelúdio para o voo do seu espírito.” Respeitando-lhe a vontade, sepultam-no com o véu a cobrir-lhe o rosto.
Contemporâneo do autor, Edgar Allan Poe assinou uma crítica sobre o conto, constatando que cada leitor é desafiado a encontrar a explicação sobre o caso, afinal não tão absurdo quanto possa parecer, porquanto Hawthorne inspirara-se no caso real de um clérigo de York, no Maine, que matara acidentalmente um amigo, quando era jovem, e nunca mais se libertara de véu semelhante desde o funeral  até à morte. Aqui, porém, Hooper nega o olhar dos conterrâneos para nele não verem a essência pecaminosa, intenção que se revela arrogante, algo a que um bom cristão deveria furtar-se.
Temos, pois, questões como a natureza escondida da culpa, a comunhão dos pecadores e a moralidade. O mesmo Poe especulou que Hooper poderia ter cometido adultério com a jovem, cuja urna é instado a acompanhar no início da história, dado ser esse o dia em que começa a envergar o véu. Hawthorne dá um sinal dessa possibilidade, quando os coveiros são tomados de breve visão, que o mostra de mãos dadas com o espírito da defunta.
Outras leituras referem o véu associado à obsessão puritana com o pecado, que fundamenta o medo obsessivo da comunidade com a salvação pessoal, havendo sempre o medo de não se fazer o bastante para merecer o acesso ao céu.
Na minha perspetiva a mais pertinente é a da rapidez com que os paroquianos normalizam a surpresa inicial, assimilando-a e comportando-se depois como se nada de extraordinário constituísse. É a velha fórmula pessoana do primeiro estranha-se, depois entranha-se. Ora, graças a essa tendência humana de cariz quase universal, quantos absurdos aceitamos na nossa quotidianidade sem os questionarmos? No caso dos não ateus, como levá-los a ajuizarem criticamente o facto de aceitarem a existência de uma qualquer natureza divina...

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