quinta-feira, outubro 26, 2017

(DL) Afinal o Big Brother não estava onde Orwell julgava

Em 1945 George Orwell sentia-se tão interiormente devastado quanto a cidade de Londres, enfim liberta dos efeitos da guerra ganha pela coligação internacional antifascista. Desejando afastar-se da atividade jornalística e disposto a dedicar-se a tempo inteiro à ideia de romance, que lhe germinara na cabeça, vai radicar-se na ilha de Jura no arquipélago das Hébridas interiores ao norte da Escócia.
Era local com poucas centenas de habitantes para uma superfície de 400 km2 com quase toda a população concentrada na única aldeia, Craighouse, situada na ponta sul da ilha. Mas não é no convívio com os calorosos ilhéus, que Orwell aposta: vai para a ponta contrária, instalando-se numa casa isolada sem água canalizada, nem luz elétrica, em sítio apenas alcançável por estreitas azinhagas.
Nos quatro anos seguintes, Orwell dedica-se por inteiro à escrita, apenas tendo por distração a caça de cervídeos em que baseia a alimentação. Se tinha de dali sair para tratar de assuntos administrativos ou relacionados com a edição dos seus livros anteriores, cuidava de os despachar tão rapidamente quanto possível para voltar à quietude do espaço que tornara seu.
É pois um misantropo - com todos os defeitos inerentes a esse traço de carácter - que se ocupa da criação de «1984», o romance que resultará dessa estadia.
A crítica incensá-lo-ia como sua obra maior, mas, homem de esquerda, teria Orwell a noção de estar a criar um romance, que beneficiaria, sobretudo, os anticomunistas primários apostados em utilizá-lo como poderosa arma de arremesso contra quem defendia ideais comunistas?
Lido à distância de setenta anos compreende-se que a caricatura do estalinismo acaba por se ajustar bem mais às sociedades capitalistas avançadas dos nossos dias do que ao tipo de regime então prevalecente em Moscovo. Ou pretendemos esquecer o significado dos alertas denunciados por Edward Snowden a propósito das atividades da NSA ou de outros whistleblowers a propósito de agências igualmente implicadas em vasculhar os mais recônditos pormenores das atividades de cada um de nós?
Por o sentir idiota útil dos que tinham ganho a guerra em aliança com a URSS e depois logo contra ela investiram agressiva guerra fria, andei anos a detestar Orwell. Afinal o Big Brother tinha-se tornado uma realidade para muitas das vítimas da sanha macarthista dos finais dos anos 40 e dos anos 50 nos Estados Unidos demonstrando que, mais do que a caricatura de comunismo sob a forma estalinista, era o fascismo a merecer atenção particular para que não voltasse a emergir do ovo logo posto a chocar por Truman, Adenauer ou pelos discípulos de Churchill.
Orwell não teria tempo para constatar a utilização perversa do romance: a longa estadia em Jura, com as friúras e humidades inerentes, causar-lhe-iam danos irreparáveis nos já fragilizados pulmões. Quando a tuberculose ganhou dimensão incurável viu-se obrigado a despedir-se da ilha para nunca mais voltar.
A morte viria ao seu encontro pouco mais de seis meses depois da publicação do romance, levando-o em plena glória de uma obra, que estava a ganhar relevo junto daqueles que a sabiam útil aos seus ínvios propósitos.

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