quinta-feira, outubro 12, 2017

(DIM) O dia em que fui até à porta do Ermitage e não entrei

Com muita pena minha só estive uma vez, e por breves horas, em Leninegrado. Foi em 1989, quando Gorbatchev já tinha aberto a caixa de Pandora, a que dera o nome de perestroika, e o muro de Berlim começava a abrir fissuras, que se estilhaçariam em novembro desse mesmo ano.
Na altura era primavera e a cidade era uma incrível ostentação dos contrários, pois tanto conseguia brilhar nas cúpulas douradas das igrejas e palácios, como possuía ruas e estradas terceiro-mundistas com os buracos a ocuparem mais espaço do que o tapete de alcatrão.
Adivinhasse que não voltaria a pisá-la e teria aproveitado melhor as dez ou doze horas, que ali escalámos antes de seguirmos para as outras capitais nórdicas, que davam nome àquele cruzeiro específico. Não teria, por exemplo, agendado trabalhos na casa das máquinas para essa manhã, sabendo-os igualmente exequíveis na estadia seguinte , que ocorreria na pouco interessante Helsínquia. Infelizmente só saímos de bordo depois do almoço e com hora marcada para testar as máquinas principais antes da chegada dos passageiros entretanto mobilizados para as suas excursões.
Ao descer do portaló, acompanhado de outros dois colegas, tinha um alvo preciso a alcançar: o Ermitage, museu considerado como um dos mais interessantes a nível mundial, ombreando facilmente com o Louvre. Mesmo que só pudesse apreciar brevemente meia dúzia das suas mais emblemáticas obras, esse usufruto já teria justificado a caminhada até dar com ele. Mas o Palácio possuía um outro significado essencial: tinha sido sob a sua antiga designação, a de Palácio de Inverno, que a bem amada Revolução de Outubro de 1917 conhecera o seu clímax. Era, mais do que o objetivo artístico, o anseio que ali me levaria: calcorrear a tridimensionalidade do espaço onde Lenine e Trotsky tinham proclamado a vitória da República dos Sovietes.
A caminhada ao longo das margens do Rio Neva foi em passo acelerado, mas depressa percebemos que o Museu ficava a enorme distância e que os transportes não eram fáceis, nem frequentes, havendo a dificuldade complementar de não encontrarmos interlocutores capazes de nos ajudarem em língua inglesa.
Sucessivamente encaminhados por quem íamos contactando para a aferida direção certa, só ao fim de duas horas é que chegámos à porta do majestoso edifício azul esverdeado (ou verde azulado?), adornado de incontáveis colunas. Olhando para o relógio, concluímos o inevitável: urgia retomar, de imediato, o percurso de regresso a bordo sob pena de atrasarmos a saída do navio.
A contragosto assim fizemos: esse foi o dia em que estivemos à porta do Ermitage e nele não entrámos.
Compreende-se, assim, melhor, porque integrei o filme de Alexander Sokurov neste ciclo de cinema dedicado à Revolução de Outubro. Ele é o mais longo plano-sequência da História do Cinema, durando 96 minutos em que a câmara segue dois personagens - o próprio cineasta e um aristocrata francês do século XIX - pelas trinta e três salas principais do edifício, constituindo uma bela visita guiada pela sua incalculável riqueza patrimonial e reencontrando muitos dos vultos históricos, que fizeram efemeramente seu todo aquele espaço.
Encontramos Pedro I, que fundou a cidade e a tornou capital do seu império, a imperatriz Catarina com o seu fascínio pelo teatro, o czar Nicolau I numa receção faustosa ou o baile de celebração do terceiro centenário da dinastia dos Romanov, que não tardaria a ser derrubada. Há também a presença dos que sofreram o terrível cerco de mais de novecentos dias durante a Segunda Guerra Mundial e três orquestras, à frente de uma das quais reconhecemos aquele que é, muito provavelmente, o mais importante maestro do nosso tempo - Valery Gergiev.
Além de uma viagem fascinante pelo tempo e pelas artes ali expostas, a «Arca Russa» é uma notável proeza técnica, porque foi rodado no tempo real em que dura o filme e num só dia: 23 de dezembro de 2001. Para a tornar possível foram mobilizados dois mil figurantes e atores, que interpretaram os papéis correspondentes aos 877 personagens sinalizados como presentes no filme. Comandava-os os 22 assistentes de realização, que Sokurov superintendia, e abriam espaço para que o diretor de fotografia, Tilmen Büttner, evoluísse com a sua steadycam com que recolheria as imagens de toda aquela momentânea, mas grandiosa performance.
O grande trabalho de pós-produção ocorreu a nível do som, que resultou numa montagem complexa e perfeita.
Questionar-se-á, porém, o que o aqui mostrado terá a ver com a Revolução cujo centenário agora se comemora, e a resposta é óbvia: o grande evento histórico nunca teria podido ocorrer se não existisse um despotismo tão excessivo por parte dos Romanov, particularmente do que seria o último imperador da malquista dinastia.
A Arca do título mais não faz do que metaforizar a própria Rússia, arrastada pela corrente da História e à procura de se reinventar numa identidade integradora do seu povo, praticamente ausente de todo o fulgor palaciano, porque incumbido apenas de servir submissamente quem se equiparava a Deus. Os noventa e seis minutos revelam muito pelo que exibem da ostentação da corte, mas sobretudo pelo que omitem da miséria e da fome que estavam presentes no dia-a-dia da maioria dos camponeses. Perante tão obscena desigualdade entre quem colhia da vida os maiores benefícios e quantos eram convencidos a conformarem-se com a sua triste condição neste “vale de lágrimas”, como seria possível ignorar que a vontade emancipadora acabaria por ganhar alento no momento em que Lenine achou oportuno o momento de virar do avesso toda a ordem política e social até então existente?

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