quinta-feira, outubro 05, 2017

(DIM) «Alexandre Nevsky», a beleza ao serviço da propaganda e da alma russa

No mês em que vamos celebrar o centenário da Revolução de Outubro faz algum sentido iniciar um ciclo de cinema dedicado à efeméride com o «Alexandre Nevsky», que Sergei M. Eisenstein rodou em 1938? Claro que seria mais compreensível que optássemos pelo «Couraçado Potemkin» ou pelo «Outubro», assinados pelo mesmo realizador ainda no tempo do cinema mudo, mas se já não é fácil atrair espectadores para filmes a preto e branco, eles ainda tenderão a ser mais escassos se os diálogos entre as personagens forem substituídos por legendas intercaladas entre as imagens do ecrã.
É nesse sentido que «Alexandre Nevsky» constitui uma alternativa com algum sentido porque, apesar da guerra civil subsequente aos acontecimentos de 1917, nunca o regime soviético esteve tão em causa como quando Hitler mandou avançar os seus blindados para as estepes russas em junho de 1941 naquela que designou como Operação Barbarossa. Duas dúzias de anos depois o legado bolchevique estava em causa e, pressentindo-o, Estaline convidou Eisenstein para adaptar o episódio medieval, que melhor se ajustava às circunstâncias de então.
Com um filme declaradamente de propaganda o líder soviético pretendia avisar Hitler em como quem pela espada invadisse a Rússia, por ela haveria de morrer. Ao mesmo tempo haveria que ajeitar tanto quanto possível a veracidade histórica de modo a alcançar outro objetivo primordial: elevar a moral soviética tão combalida com as purgas de 1936 e 1937, que tantas mortes e deportações para os goulags tinham implicado para quantos a NKVD (uma das antecessoras do KGB) identificara como inimigos do regime.
Eisenstein agarrou a oportunidade com o maior dos entusiasmos: desde 1929, que não conseguia concretizar um projeto de fio a pavio. A aventura em Hollywood saldara-se por um perturbante fracasso e o seu  título mais recente - «Que Viva México!» - nunca seria concluído, vendo-se ele despojado de toda a película utilizada nos locais das filmagens. Nunca o sentindo como um filme pessoal, e prescindindo de muitos dos seus habituais métodos de montagem, ele construiria uma belíssima sinfonia visual, que constitui um autêntico regalo para os olhos e para os ouvidos, porque não se pode esquecer o facto de ter-se aqui iniciado a frutuosa colaboração com o compositor Sergei Prokofiev, responsável por uma partitura capaz de servir de contraponto musical às imagens no ecrã.
Quando o filme começa vemos o território russo, recém-libertado do jugo mongol, a ser ameaçado pelos teutões, provenientes da que viria a ser a moderna Alemanha. Está-se em 1242 e o avanço é tão imparável quanto seria o dos exércitos nazis sete séculos depois. Derrotados em Pskov, os sitiados ficam confinados a Novgorod É então que o povo reclama a vinda do príncipe Alexandre, que derrotara os suecos dois anos antes e se remetera aos seus domínios ocupando-se sobretudo nas suas bem aprazíveis atividades piscatórias.
Exigindo o poder absoluto, ele é caracterizado por Eisenstein com todas as qualidades, que desejaria ver em Estaline e que este não enjeitaria ter: é corajoso, forte, amável, sábio e orgulhoso com a identidade do seu povo a quem escuta atentamente. O conto popular narrado por um dos soldados antes da batalha decisiva, sobre uma lebre e uma raposa, servir-lhe-á de inspiração para a vencer pela inteligência estratégica. Porque, a exemplo dos nazis, Estaline sabia bem como estava em séria desvantagem perante os potenciais inimigos, tanto mais que eliminara alguns dos mais brilhantes generais com que melhor poderiam resistir á previsível invasão.
Os invasores são, igualmente, caracterizados o mais malevolamente possível para suscitar emotiva indignação nos espectadores, que viessem a ver o filme: os prisioneiros indefesos são sumariamente massacrados, as mulheres escravizadas, os bebés atirados para as fogueiras.
Mostrando o quanto se deixara influenciar pela cultura de Hollywood, Eisenstein não hesita em criar um maniqueísmo primário com os bons a terem todos os atributos dos heróis e os maus a excederem-se em crueldade. Mas - e esse é decerto um contributo fundamental colhido nos EUA - ele aligeira o caracter propagandístico com alguns momentos cómicos e uma intriga romântica em torno de um triângulo amoroso, que se irá clarificar ao longo do filme.
Curiosamente Alexandre Nevsky vence por ter conseguido atrair os inimigos para uma armadilha, afogando-os, com as suas pesadas armaduras, no gelo traiçoeiro do lago Chadskoe. A exemplo do que o manhoso Estaline faria no ano seguinte ao da estreia deste filme, assinando o pacto germano-soviético para ganhar o tempo necessário à preparação da invasão, que viria inevitavelmente mais tarde. Se os teutões dos tempos medievais haviam morrido no gelo fundido, os seus descendentes do século XX viriam a finar-se no gelo persistente do inverno russo, que cento e trinta anos antes também vergara as ambições expansionistas de Napoleão.
No entretanto, enquanto Estaline e Ribbentrop celebravam a falsa amizade, enquanto faziam contas ao momento em que apontariam armas um ao outro, o filme de Eisenstein foi brevemente retirado de circulação. Dois anos depois viria a ser profusamente exibido por toda a União Soviética como veículo de propaganda destinado a unir os povos entre os Urais e o Pacífico no desígnio da guerra antifascista.
A beleza formal dos trinta minutos, que duram as cenas da batalha definitiva é imperdível. E não devemos alhearmo-nos de como os invasores são mostrados na linearidade das suas cruzes e lanças, que os cingem às horizontais e verticais, enquanto as multidões russas apresentam-se compactas como assim as pretendia representar Eisenstein por ser essa a aparência a colar á genuína alma russa.
Muito embora prefira «Ivan o Terrível» - que considero até o filme da minha vida! - este «Alexandre Nevsky» é uma belíssima experiência para lançar a comemoração da mais entusiasmante aventura do século XX. 

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