terça-feira, novembro 14, 2017

(DL) Os sonhos como matéria perigosamente subversiva

Ao iniciar a leitura de «O Palácio dos Sonhos», que Ismail Kadaré publicou em 1990 - exatamente no mesmo ano em que se exilou em França! - a primeira curiosidade tem a ver com a sua própria personalidade. É que, durante muitos anos, ele foi glorificado como expoente máximo da literatura albanesa durante a vigência do regime liderado por Enver Hoxha até chegando a desempenhar funções parlamentares sem se lhe conhecerem sinais de desconforto. Daí que, na altura em que este livro saiu, tenha suspeitado do típico oportunismo dos que abandonam um barco, quando ele mete água, sem cuidarem de quem deixam para trás.
Avancei para o primeiro capítulo tomado de tal desconfiança, mas cedo me deparei com uma estrutura narrativa muito sugestiva a lembrar alguns romances de Stanislas Lem (mormente as «Memórias encontradas numa banheira») na descrição das instituições burocráticas dos regimes impropriamente ditos comunistas, como algo de labiríntico, maquinal na forma como produziam normas e regulamentos controladores do pensamento coletivo sem nele possibilitarem qualquer espírito crítico.
O protagonista é Mark-Allen, um jovem oriundo de influente família, acabado de entrar no Tabir Sarrail, mastodôntico edifício onde são selecionados, interpretados e analisados os sonhos rastreados em toda a população do vasto império comandado pelo Sultão. Procuram-se neles os vaticínios em relação ao que o futuro lhes reservará.
A exemplo da matéria em que trabalha, o protagonista vai-se apercebendo da nova realidade de modo fragmentário: uma conversa tida ali, outra escutada acolá, toda a estrutura do Palácio dos Sonhos vai-se desvendando na sua lógica totalitária. Há carceres na cave onde certos fazedores de sonhos são torturados até à morte, ou materiais aparentemente forjados como provocações, mas passíveis de denunciarem os propósitos subversivos de quem os lê e nunca suspeitara tê-los dentro de si.
Se o Sultão é servido com temor, todos os súbditos são levados a pensarem nos sinais que transmitem para o exterior, sempre acautelando a possibilidade de denunciarem tentações inconfessáveis. E Mark-Allen tanto sente isso na Seleção, por onde iniciara funções, como na Interpretação, para onde fora transferido e em que o deixo por ora, enquanto fecho o livro a meio. 

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