sexta-feira, novembro 03, 2017

(AV) A fase criativa de Chagall no Midi provençal

Vence é a terra onde Eduardo Lourenço fixou residência a partir de 1965. Precisamente quase na mesma altura em que um seu prestigiado vizinho, Marc Chagall, estava prestes a mudar-se para a vizinha aldeia de Saint Paul, a quatro quilómetros dali, porque já não suportava o bulício de uma terra invadida por número crescente de turistas, causadores da perturbação à sua almejada serenidade.
O artista chegara a Vence em 1949, ao fim de uma longa errância, que o trouxera da sua Bielorrússia natal, onde escapara incólume à frequência com que se organizavam pogroms contra quem, como ele, possuía ascendência judaica. Sobrevivera, igualmente, às ameaças do regime nazi, exilando-se nos Estados Unidos entre 1941 e 1948, aí sofrendo a perda de Bella, a primeira esposa, que fora modelo e musa de muitas das obras criadas até então.
A mudança para o Midi francês pretendia tornar-se numa espécie de renascimento pessoal depois de profunda depressão. A motivação também era  artística, porque tratava-se de região com forte prestígio no mundo dos criativos: desde o início do século XX tinham sido muitos os artistas, que ali se haviam radicado por causa da luz. Para Chagall existiria, igualmente, outra vertente relevante: muito marcada pela religiosidade cristã, a região poderia servir de estímulo para a sua busca espiritual.
Não admira que a obra de Chagall adote novo ciclo com essa sedentarização: a cerca de vinte quilómetros da Côte d’Azur, entre o mar e a montanha: à vista de picos rochosos e esbranquiçados, revestidos de uma vegetação tipicamente mediterrânica, Vence e Saint Paul serão a «casa» que sempre procurara e nunca chegara a encontrar..
Até então a obra caracterizara-se pelos seus temas oníricos, sugerindo uma incurável nostalgia. O convívio com a ambiência provençal transfigura-o, sugestionado pelas nuances provocadas pelas nuvens ou pelo movimento dos ventos que alteravam continuamente as cores e os tons das folhas das árvores ou das pedras das muralhas, como se toda a paisagem se dotasse de singular dinamismo. Doravante as cores das obras, quer nas telas, quer nos painéis com pequenos mosaicos, teriam cores mais intensas e exaltadas como o atesta o quadro do «Casal numa paisagem azul».
Nos dezasseis anos em que viveu em Vence, Chagall inebriou-se não só com as emoções visuais, mas também pela musicalidade das fontes, que se espalhavam pela aldeia.
Em 1979 concretizaria uma das suas mais famosas obras na Igreja de Nossa Senhora da Natividade, no zona histórica da aldeia: construído com pequenos mosaicos, a obra dá uma nova aparência à estória de Moisés salvo das águas. Datam, igualmente, deste período as dezassete telas com temas bíblicos, que ofereceria ao Museu de Nice, todas elas a refletirem a natureza paradisíaca da região a que se acolhera.
A mudança para Saint Paul também inclui a presença de uma nova musa na sua vida: Vava, que a exemplo de Bella, será modelo das obras luminosas, que então produz. A quietude, que ali sentiu até à morte, em 1985, só era alterada pelo convívio com alguns vizinhos de eleição com quem privava e discutia as ideias sobre a arte: Ferdinand Léger, Joan Miró, Alexander Calder. Decerto que com eles terá aprofundado essa intenção de transmitir maior vibração às cores nas obras que, quase até ao fim, criou.

Sem comentários: