quinta-feira, novembro 23, 2017

(DIM) Esta noite no Cineclube Gandaia iremos escalpelizar «Paranoid Park» de Gus Van Sant

Em 2006 o realizador Gus Van Sant estava num impasse quanto ao que faria a seguir, depois de concluída a trilogia sobre a morte, que incluíra como títulos o «Gerry» de 2002, o «Elephant» de 2003 e o «Last Days» de 2005.
Entusiasmou-se, então, por um livro de Blake Nelson intitulado «Paranoid Park» e que tinha como cenário a cidade de Portland, no Oregon, um daqueles locais raramente objeto da atenção dos cinéfilos e onde poderia explorar personagens incomuns. O tema do romance ajustava-se à intenção de abordar a forma como a aprendizagem da vida poderia ser feita tão abruptamente, através de uma espécie de remake do «Crime e Castigo» de Dostoievski transferido para um ambiente contemporâneo. Tal como na obra maior do autor russo temos um anti-herói mergulhado num abismo metafísico. Com a diferença de aqui ter-se tratado da morte acidental de um segurança, brutalmente cortado em dois por um comboio, quando o protagonista tentava dele escapar.
Um dos aspetos que fascinam no filme é Gus Van Sant ter-se dissociado da estrutura linear da narrativa optando por baralhar e dar voltas no tempo. Logo de início há algo de premonitório na frase anotada por Alex no seu diário quanto a ninguém estar preparado para a experiência do Paranoid Park. O nome verdadeiro de tal espaço é Burnside Skate Park e foi construído e mantido por miúdos, ainda sendo um dos maiores e míticos recintos da modalidade a nível mundial.
Porque pretendia jovens atores, que ninguém conhecesse, e fossem hábeis praticantes de tal desporto, Gus Van Sant procurou recrutá-los nas redes sociais, tendo feito quase três mil audições para conseguir preencher os papéis congeminados no argumento, que levara apenas dois dias a criar.
Temos assim Alex, o Raskolnikov de serviço, a contas com a desagregação da família (os pais em processo de divórcio) e mais interessado nas sessões de skate do que nas tardes de sexo com a namorada. Há Jared, o colega de turma, que o levara pela primeira vez ao Paranoid Park, mas não o acompanhara na obsessão por ali vivenciar todo o tempo disponível. Há Scratch, o homem mais velho, que o convidara para divertirem-se à pendura nos comboios ali ao lado e, na prática, o aliciador para o drama, que se seguiria. E há o detetive Lu com a sua paciência asiática para conseguir a revelação do sucedido, esclarecendo que o aparente acidente comportava uma realidade complexa e enquadrável na classificação de homicídio. Se o Paranoid Park começara por representar a possibilidade de transgressão, acabaria por se converter em cenário de crime com a respetiva investigação policial mediatizada. E, como sucede habitualmente nos filmes de Van Sant a amizade serve de contrapeso à solidão e à desorientação suscitada pela dissolução dos laços familiares.
Existem poucos diálogos, mas atenção ao notável trabalho sonoro, que confere ao filme a ambiência pesada. O trabalho de fotografia, dirigido por Christopher Doyle é merecedor de particular atenção: além do recurso frequente da câmara ao ombro, não faltam os longos travellings típicos da filmografia gusvansantiana, distinguindo-se as cenas rodadas em 35 mm das que se optou pelo Super 8 (quase todas em que existem exibições dos skaters).
A música desempenha, igualmente, um papel determinante, podendo os apreciadores de Fellini encontrar aqui as sonoridades compostas por Nino Rota para «Amarcord» e «Julieta dos Espíritos».
Como balanço podemos questionarmo-nos sobre que sentido nos leva a integrar este filme num ciclo sobre o Sonho Americano e a facilidade com que ele se transforma num pesadelo. Mas parece-nos óbvia essa quase inevitável queda no abismo suscitada por circunstâncias, que prometiam compensações, mas afinal se convertem em angustiantes e insolúveis labirintos.
Pessoalmente este é o meu filme preferido neste ciclo, que corrobora afinal o motivo porque o prestigiado «Cahiers du Cinema» o tenha enaltecido como o melhor de quantos foram estreados em França em 2007.



Sem comentários: