quinta-feira, novembro 09, 2017

(AV) Bonnard e Matisse, uma longa amizade

Trata-se de uma das mais importantes exposições, que podem ser visitadas atualmente no espaço europeu: a que põe em comparação o impressionismo tardio de Pierre Bonnard com a atração que Henri Matisse tinha pelas vanguardas. Foi inaugurada em setembro no Städel Museum de Frankfurt e pode ser vista até 14 de janeiro.
Nascidos com dois anos de diferença, o primeiro em 1867. o segundo em 1869, esse hiato terá sido bastante para que as suas opções estéticas se distanciassem. O talento de Bonnard foi consagrado muito cedo e ele nunca mais se conseguiu livrar das convenções em  que se vira reconhecido, enquanto Matisse chegaria tarde à pintura e estaria bem mais disponível para apreender e imbuir-se das ruturas então propostas em relação aos cânones. Numa das muitas cartas que trocaram nos quarenta anos em que desenvolveram fraterna amizade, Bonnard lamentaria isso mesmo: não ter feitio para se abrir tanto às novas linguagens quanto o seu interlocutor.
Nos temas selecionados eles quase coincidiam: as paisagens, sobretudo vistas do interior em Matisse, assumidamente exteriores em Bonnard, e o nu feminino. Mas, mesmo neste as diferenças eram de tomo: o pintor mais velho teria sempre a esposa, Marthe, como foco de representação, enquanto o mais jovem recorreria a inúmeras modelos profissionais.
Vejamos um exemplo elucidativo dessa distinção: nos quadros abaixo: o motivo é idêntico, porque em ambos se vê uma mulher deitada sobre uma manta azul aos quadrados: os tons e cores de Bonnard têm uma delicadeza, que evoca o lado sonhador próprio dos impressionistas em fim de ciclo. Pelo contrário Matisse opta pelas cores claras e formas mais básicas a evocarem os primórdios da abstração. Ademais, enquanto o primeiro aplica sucessivas camadas de pintura na tela, Matisse é bastante mais expedito na criação da obra.
Na arte do século XX, Pierre Bonnard ocupa uma posição especial. Desde a década de 1890, foi tido como um dos principais exponentes do modernismo francês - e manteve essa reputação ao longo de cinco décadas, até sua morte em 1947. Confiante, criou o seu próprio estilo e desenvolveu um linguagem formal inconfundível, sem deixar-se contagiar pelas correntes de vanguarda suas contemporâneas.
Com pinceladas soltas e paisagens cheias de luz, Bonnard acabaria por ser considerado datado pelos críticos da época da Segunda Guerra Mundial, incomodados  com o que consideraram ser a sua mensagem hedonista, incompatível com as inquietações de então.
À distância essa leitura é incompreensível, porque muitas das suas composições contêm uma tensão não resolvida - uma metáfora de alarme que ameaça entrar em erupção sob a aparente opulência visual. Especialmente os interiores revelam um humor ambivalente, estranhamente passivo, como se estivesse em transe: os personagens, principalmente femininos, parecem misteriosos, inquietantes.
As inúmeras representações de Marthe contestam a avaliação de Bonnard enquanto pintor feliz, mesmo que obcecado com o mundo à sua volta. Na  mulher a sair do banho,  ela surge-nos como criatura assustadora: a perna esquerda parece congelada, enquanto o roupão pesado envolve o corpo sem vida como se fosse uma mortalha. Como quase sempre nele acontece a cabeça inclina-se, negando ao espectador o contacto visual, virando-lhe quase provocadoramente as costas.
Bonnard interessou-se, e de que maneira, pela natureza, sem nunca a tentar copiar figurativamente. Em vez de se postar face a ela para a representar, é de memória que a recriava no atelier, apenas ajudado por alguns rascunhos de desenhos. Conseguia, dessa forma, o lado onírico, que ambicionava recriar nas obras através da desmaterialização dos objetos, algo que também replicava quando se tratava de diluir a nudez de Marthe no ambiente da sala onde a representava.
Essa intenção explica essa já referida necessidade de aplicar sucessivas camadas de tinta, umas em cima das outras, fazendo com que se acentuasse o lado plástico da tela e que o tempo de conceção de cada obra fosse mais dilatado.


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