domingo, novembro 05, 2017

(DL) A insuspeita proximidade da Caparica com a costa adriática

Não fosse a minha irmã ter-me emprestado «O Museu da Rendição Incondicional» de Dubravka Ugrešić, aconselhando-me a respetiva leitura, e nunca teria sentido vontade em conhecer a escrita desta croata atualmente a viver em Amesterdão.
O interesse logo cresceu, não só por ter escolhido para viver o mesmo país onde tenho a filha e as netas, mas sobretudo por ter pertencido ao imenso e desaparecido país, que foi também o do meu genro: a Jugoslávia. E nem o facto de ter origem croata me arrefeceu a curiosidade: afinal o percurso de carro entre Zagreb, capital dessa nova República, e Liubliana, cidade que tão assertivamente entrou na nossa geografia, demora menos de duas horas a velocidade suficientemente aprazível para gozar a paisagem. Vistas bem as coisas, entre eslovenos e croatas as diferenças culturais pouco justificam a fronteira, que os separa.
É assim que, relatando tão detalhadamente as memórias de infância nos anos cinquenta, ela remete-me para o que era viver na Caparica em meados da década seguinte, quando ali era um miúdo cheio de curiosidade por tudo quanto ocorria à volta. Esse tempo em que os jovens eram mandados em força para Angola e a primeira máquina de sorvetes quase merecia inauguração solena e discurso do regedor. Apesar de tão distante da costa adriática, a pobreza remediada era a mesma, alheia a tudo quanto a sociedade do consumo pretenderia impor-nos como indispensável tão só chegámos à vida adulta.
Equivaliam-se as paixões e as frustrações bem como o desespero dos suicidas, a coscuvilhice das vizinhas ou o excessivo álcool dos maridos. Comparando essas reminiscências com as minhas de pouco importa, que ela vivesse num país tido como comunista e eu numa antipática ditadura fascista. Quando se trata de provocar o retrocesso temporal até ao que fomos, perde importância a organização social, secundarizada  pelos rostos que resgatamos e o quanto eles nos foram relevantes. Porque foram essas pessoas, familiares ou não, que nos forjaram, estimulando-nos para virmos a ser quem hoje somos.
O livro está a vir ao encontro de uma necessidade pessoal, embora geracionalmente Dubravka  me anteceda em sete ou oito anos: a condição sexagenária revela-se oportuna para o balanço do deve e haver que todo o passado contabilizou  em nosso favor ou desfavor. Ou talvez para, antes do inevitável desiderato retermos, na medida do possível, o que se foi esvaindo na pressa dos dias, com a sucessão de emoções, que alcançam enfim a merecida serenidade.

Sem comentários: