quinta-feira, agosto 31, 2017

(DL) Uma pérfida personagem

Que tipo de masoquismo pode ter um escritor, quando escolhe como protagonista do seu romance uma personalidade execrável, aquele tipo de criatura de quem nos apressaríamos a impor higiénica distância se a encontrássemos na vida real? Desconheço a motivação do autor de «A Ministra», mas adivinho o quanto terá sido difícil passar semanas com uma mulher tão despojada de qualidades, tudo nela sendo mesquinhez, calculismo, arrogância.
Miguel Real imaginou tal criatura a receber o convite do primeiro-ministro para integrar a sua equipa e a pedir uns dias de reflexão até dar a resposta, que já sabe vir a dar. Apenas pretenderá fazer-se difícil…
Nesses dias de ansiosa expetativa por ver a vida dar-lhe tão prodigioso salto, ela recorda todo o passado, desde a infância no Algarve até aos longos anos de professora na Universidade lisboeta.
Em miúda, ainda antes de testemunhar o assassinato da mãe às mãos do marido, que a apanhara em flagrante nos braços do amante, já ostentava um carácter perverso ao tomar como hobby preferido o arranque da cabeça das bonecas.
A adolescência será passada no orfanato, onde ganha a alcunha da «Encolhida», mas em que tudo faz para ganhar a afeição das freiras. Doravante ela saberá sempre identificar quem possui o poder nos sítios, que frequenta e como tirar vantagem de se lhe colar através da bajulação. É assim que conseguirá progredir rapidamente na carreira docente, copiando estatísticas de trabalhos estrangeiros e adaptando-os às realidades nacionais. Ninguém se apercebe que ela se limita a plagiar textos alheios e ela ganha renome como especialista de uma nova especialização da Sociologia fundamentada apenas nos indicadores quantitativos.
Se pela mão do ex-marido chegara à Universidade como assistente, depressa dali o desalojara para o Ensino Secundário, substituindo-o como professor de diversas cadeiras e doutorando-se sempre à custa da forma manhosa como se ia fazendo fraca perante os fortes (os catedráticos) e plagiando o mais habilidosamente possível trabalhos alheios.
Agora, aos cinquenta anos, vê-se desprezada pelos filhos, que preferem a companhia do pai e da nova esposa, por quem passara a nutrir um insuportável ódio de estimação. Politicamente os seus valores eram os do regime fascista, mesmo que disfarçando-os, ciente de quanto veria perigado tudo quanto conquistara se os assumisse sem pejo.
No ministério conta aplicar o seu programa de clara divisão entre as elites e as camadas mais empobrecidas da população às quais apenas pretenderia garantir os conhecimentos básicos para virem a servir de trabalhadores pouco qualificados numa economia baseada nas exportações de mercadorias com pouco valor acrescentado. Mas o que a compraz é viver por antecipação o gozo de ser vista pelos outros como pessoa poderosa, que nunca mais teriam vontade de menosprezar.
O problema é que virá a acontecer o que cedo adivinhamos: quando liga para o primeiro-ministro este pede-lhe muita desculpa, mas já decidira atribuir a pasta ministerial em causa a outra personalidade.
A ministra que o não chegara a ser vê-se condenada a passar o Natal a remoer o despeito de ter perdido uma tão soberana oportunidade para escamotear a sua efetiva mediocridade. 

Sem comentários: