quarta-feira, agosto 30, 2017

(DL) Quando as purgas de Moscovo estavam quase a começar

Sobre o estalinismo estou convicto de ter-se tratado de um período terrível da história soviética, mas com tanto de negativo a associar-se-lhe quanto o de outras sociedades da mesma época, dominadas pelo capitalismo selvagem. Entre o medo dos intelectuais russos da época das purgas e o desespero dos imigrantes de Steinbeck na época da Grande Depressão, o sofrimento poderia comparar-se, mas dificilmente ordenar-se quanto à respetiva dimensão.
O que aconteceu na década de 30 com as grandes purgas de Moscovo teve a ver com escolhas erradas do Comité Central, por incompetência e cegueira perante desafios novos para os quais não existiam receitas testadas, e com efeitos devastadores junto dos que já deveriam estar na altura a colher os benefícios de um regime concebido para lhes garantir indizível felicidade. Como em vez da abundância e da igualdade, surgiu a escassez, a miséria, a doença e a corrupção, inventou-se o inimigo interior capaz de tudo destruir com as suas sabotagens. Que não eram tão descabidas quanto isso, porque desde a tomada do poder pelos bolcheviques nunca os vizinhos ocidentais se pouparam nos esforços para devolver o poder aos suspeitos do costume.
«O Caso do Camarada Tulaev», o romance de Victor Serge há pouco traduzido para português, é uma proposta interessante, mesmo que a saibamos enfeudada à lógica de descrever a realidade moscovita de 1934 com as cores mais sombrias possíveis. Mas se o autor explicita as carências dos mais desvalidos, a prostituição, a fome nos campos e as filas para comprar alimentos básicos, o talento com que o faz redime-o de tão sórdido conteúdo.
Romachkin, um dos personagens, cedo atribui as culpas de tanto sofrimento a Estaline e decide comprar uma pistola para seguir os seus instintos anarquistas assassinando-o. Quando, porém, se cruza com ele num jardim adjacente ao Kremlin a cobardia impede-o de agir.  Trata-se de uma espécie de alter ego do escritor, também ele anarquista nascido na Bélgica, mas presente na Revolução Russa desde os seus primórdios e ator efetivo da atividade revolucionária associado a Trostski, o que lhe valeria as condenações ulteriores à prisão efetiva.
Proibido de escrever na cadeia, Serge criaria romances, que só traduziria para o papel, quando se exilou e foi encontrando bastante desconfiança, senão mesmo hostilidade nos países europeus onde nunca conseguiu voltar a instalar-se.
A exemplo do antigo companheiro de luta em Moscovo, só ganharia algum sossego no México, onde morreria em 1947 por suposto envenenamento, que se prestaria a muitas especulações quanto a quem o provocara.
Se se justifica algum comedimento em aceitar o relato de Serge como objetivo, tendo em conta a experiência prisional que lhe condicionara a interpretação dos factos, «O Caso do Camarada Tulaev» revela um escritor digno de ser integrado no exigente lote dos que, no exílio, fizeram Literatura com maiúscula a respeito do seu espaço de des-pertença.  

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