domingo, agosto 20, 2017

(DL) «Amuleto» de Roberto Bolaño

No próximo ano, quando os acontecimentos de 1968 forem recordados e reanalisados à luz do distanciamento imposto pela História, talvez o enfoque se coloque no sucedido em Paris, Praga ou na Universidade de Columbia nos EUA. Por instantes foi possível imaginar, que o movimento estudantil poderia arrastar atrás de si os operários e os trabalhadores em geral atirando o capitalismo para o caixote do lixo da História. Assim não foi, infelizmente, e temos assim sofrido mais meio século de exploração odiosa de uns e o esbulho das mais valias produzidas pela imensa maioria. Possa acontecer que a efeméride sirva para denunciar com maior contundência os crimes do neoliberalismo e as esquerdas se consigam unir a nível global para responder com outra eficácia à agudização contínua das desigualdades.
É provável que só a nível local se revivam os acontecimentos desse mesmo ano na Cidade do México, quando, em vésperas da inauguração dos Jogos Olímpicos, o exército invadiu a Cidade Universitária e matou um número indeterminado de estudantes, professores, funcionários e seus familiares, havendo quem os tenha contabilizado mais de mil vítimas. Foi o massacre de Tlatelolc.
Quem o invoca num dos seus romances é Roberto Bolaño através da personagem Auxílio Lacouture. Nascida em Montevideo, mas fascinada pelos poetas exilados na capital mexicana ou dali naturais, ela radicara-se ali começando por servir de empregada doméstica e governanta a León Filipe e a Pedro Garcias. Não auferindo deles qualquer retribuição cuidou de arranjar pequenos trabalhos administrativos ou de tradução na Faculdade de Letras e de Filosofia, sendo nesse edifício, que a História iria ao seu encontro. Porque, quando o exército desrespeitou a autonomia da instituição e a invadiu para dali levar presos quem ali se mantinha, ela porfia em esconder-se na casa de banho durante treze dias, só bebendo água, mitigando a fome com papel higiénico (sem muito sucesso!) e representando o papel de resistente aos ditames da ditadura.
Quando a sua estória é conhecida, Auxílio ganha a dimensão de personagem lendária, que se acrescenta à fama de ser já considerada a mãe da poesia mexicana. Mas nessa longa espera até o edifício ser devolvido aos seus legítimos ocupantes tem a oportunidade para nos transmitir tudo quanto vivera até ali, mormente os artistas e escritores com que partilhara o dia-a-dia.  Nomeadamente Lilian Serpas, que em tempos fora para a cama com o Che, mas depois andava pelos cafés e bares a ganhar uns cobres com os desenhos produzidos pelo filho no seu voluntário exílio esquizofrénico. Ou a pintora Remedios Varo e os seus muitos gatos. Ou o chileno Arturo Belano, que viria a conhecer o horror do golpe de Pinochet e o compensaria numa catarse de drogas e de parceiros sempre muito jovens com quem comunicava num vocabulário inacessível aos mais velhos. Ou ainda o rei dos homossexuais do bairro Guerrero, que suscitava um ascendente de terror sobre quem tinha o infortúnio de o vir a ter como proxeneta.
O romance de Bolaño tem muitos crimes, mas testemunha um tempo preciso e irrepetível. Que o faça através do olhar pragmático de uma mulher só o torna mais surpreendente e inquietante. 

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