sexta-feira, agosto 11, 2017

(EdH) Uma história de amor impossível

De Orfeu sabemos que perdeu Eurídice por não ter resistido a olhar para trás, quando a trazia resgatada do reino dos Mortos. Mas essa existência mítica é rica em episódios, que valerá a pena recordar. Por exemplo o seu imenso talento musical: quando tocava a lira, os sons eram doces como o mel, calorosos como a felicidade, tão fortes como o mais consistente dos metais. Bastava iniciar harpejos no instrumento e logo os lobos das florestas se silenciavam para o escutarem. E não se pense apenas na rendição de seres de carne e osso: os rios alteravam o curso para dele se aproximarem e os rochedos do subsolo vinham à superfície só para se deleitarem com tal talento. Que levava os próprios deuses do Olimpo, a dele se debruçarem para usufruírem de igual encantamento.
Semideus, Orfeu é filho de Calíope, musa da poesia e da eloquência, e do mortal Oiagros, rei da Trácia. Mas seria assim? É que, ao nascer, o deus protetor da luz e dos poetas, veio-lhe depositar no berço uma lira mágica com nove cordas, tantas quantas as musas. Razão para crescerem os rumores de ser ele o verdadeiro progenitor.
Ao crescer, Orfeu ganhou o prazer da viagem e da aventura, sendo saudado por todos com que se cruza. Uma manhã, na Tessálida, encontra Jasão a preparar a expedição para ir em busca do Tosão de Ouro, uma pele mágica pendurada num castanheiro n a Cólquide.  Zeus tê-la-ia oferecido a dois miúdos em perigo para com ela se esconderem dos perigos mortais em que incorriam. Um deles teria morrido durante a fuga, mas o outro chegara a esse distante porto de abrigo, onde a pusera sob a proteção de temível dragão.
Jasão tinha motivo imperioso para se apossar de tal objeto mítico: só dele possuidor conseguiria o acesso ao cobiçado trono do reino onde nascera. Fascinado pela possibilidade de ver mundos diferentes, Orfeu embarca no «Argo», juntamente com a elite dos príncipes de toda a Grécia, que perfazem a tripulação de cinquenta e dois argonautas. Será ele a garantir o sucesso do empreendimento: com as canções sossega as águas, acalmando-as e livrando os amigos das tempestades. Mas o perigo maior vem das sereias, seres maléficos que os querem enfeitiçar com os seus cânticos. Vale aos audazes, que os de Orfeu se lhes sobrepõem. Anos depois, nesse mesmo local, Ulisses tem de se aprisionar ao mastro e impedir todos os companheiros de ouvirem e verem tais seres para se livrarem dos seus manipansos.
E, com igual arte, Orfeu distrai o dragão e permite a Jasão apossar-se do desejado troféu.
Acabada essa epopeia, Orfeu vai até ao Egito, passando vinte anos com os sacerdotes de Mênfis. É aí que encontra a bela Eurídice, por quem se apaixona em dimensão assolapada: deusa dos bosques, ela é aquela com que sonhou toda a vida, a canção que nunca conseguiu compor.
Os deuses comparecem à boda, que fica ensombrada com o funesto presságio de uma tocha a apagar-se. O amor perfeito cumpre-se durante alguns meses até se precipitar a tragédia: internando-se num bosque Eurídice é assaltada por um pastor junto a um lago. Para escapar à violação foge-lhe e não consegue ver uma serpente, que a mata com a fatal mordedura. Quando vai á sua procura Orfeu encontra-a já cadáver.
Inconsolável decide ir aos Infernos, apesar de saber nunca ninguém dali ter regressado. Nas margens do rio Styx enfrenta o cão Cérbero e o seu dono, o barqueiro a quem acaba por convencer a transportá-lo na sua barca, recorrendo para tal ao seu talento na lira.  Aprofundando-se naquele espaço onde os mortos vagueiam, encontra-se com Hades e a sua rainha Perséfone, a quem comove com uma canção ilustrativa do seu infortúnio.
Convencidos por tão persuasiva confissão, Hades autoriza o regresso de Eurídice ao mundo dos vivos, na condição de Orfeu seguir adiante sem nunca se voltar para trás, sob pena de a perder de vez.
A viagem ascendente é difícil e tormentosa, mas Orfeu resiste. Ele bem sabe o que tem a perder.
Porém, quando já se avizinha a luz da superfície, e vencido pela dúvida de ver frustrado o seu desejo, não aguenta. Ao virar o pescoço para onde está a amada, é com horror que a vê desaparecer, puxada pelas inomináveis criaturas das Trevas.
Em vão tenta de Hades a correção do seu erro, mas já nem este tem o poder de alterar o inevitável. Mortificado Orfeu volta ao mundo dos homens e para eles fica como o símbolo de quem pressente a vertigem da vitória e tudo perde antes de a alcançar.
O luminoso cantor torna-se numa sombra do que fora: eremita só passa a compor temas melancólicos, pungentes. Acabará morto por acompanhantes do hedonista Dionísio, as ménades, que se espantam por ver-lhe a cabeça decapitada a prosseguir nos seus cânticos.

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