quarta-feira, agosto 09, 2017

(DL) O que subjaz ao ato criativo na Literatura ou no Cinema

Uma das perguntas mais frequentes nas entrevistas a escritores é qual o estímulo, que os leva a passarem horas a traduzir em palavras o que lhes dita a imaginação. Para Svetlana Alexievich a resposta costuma ser fácil: não inventando nada, ela descobre fragmentos de potenciais romances em qualquer lado. Basta-lhe saber ver e ouvir para encontrar matéria a utilizar na redução da História à sua dimensão humana.
Esta estratégia criativa da autora bielorrussa não se cinge apenas ao mundo da Literatura. Há poucas semanas esteve em exibição o mais recente filme de Jim Jarmusch, tendo por protagonista um condutor de autocarro numa pequena cidade industrial nos arredores de Filadélfia. Durante oito dias era possível seguir a rotina sempre igual desse homem, que se levantava diariamente às seis da manhã, transportava passageiros durante todo o dia pelas ruas da cidade, bebia uma cerveja num bar sem ninguém lhe servir de companhia e, depois, chegava a casa e contava pormenorizadamente à namorada tudo quanto vira e pensara. Nos tempos mortos, Peterson escrevia poemas sobre as coisas mais banais, apurando-se a neles inserir todos os detalhes possíveis.
O que seduzia no filme de Jarmusch era a demonstração de como uma existência tão banal conseguia enriquecer-se com a atenção conferida a tudo quanto permanecia invisível a quem lhes ia passando ao lado.
Ovídio é outro dos autores, que recorre amiúde aos detalhes. No seu celebrado «Metamorfoses» os versos enchem-se de referências minuciosas e adotam outra característica genial: o fim de uma história raramente coincide com o do livro onde aparece incluída. Ainda faltando uns quantos versos para dar por encerrado o livro, dos muitos quantos nesse título constam, já Ovídio começa uma outra história, que se explanará no seguinte. Ele assume, sem porventura disso se dar conta, a condição de precursor dos folhetinistas do século XIX ou da própria Xerazade das «Mil e uma Noites». E a exemplo de Alexievich ou de Jarmusch, Ovídio só teve de se mostrar atento  a tudo quanto o rodeava no Império Romano durante o século I a.C. para encontrar assuntos de prodigiosa diversidade com que enriquecesse a sua obra.
No fundo o ofício de escritor (ou de cineasta) não se realiza sem a velha fórmula de vermos, ouvirmos e lermos, sem nada ignorarmos! 

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