sexta-feira, agosto 04, 2017

(DIM) Jeanne Moreau no turbilhão da vida

Quase por certo vi-a antes naqueles filmes dos anos cinquenta, que me pareciam todos iguais e aos quais a nouvelle vague viria a estigmatizar com a fórmula depreciativa do cinema à papa.
Jeanne Moreau tornou-se um nome, e sobretudo uma presença a reter, quando vi «Jules et Jim» no antigo Estúdio do Império logo após o 25 de abril. E nunca mais deixaria de lhe admirar o desempenho em filmes, que perdurariam na memória. Mas seria a voz, que melhor me impressionaria na gravidade quase masculina, rica em sensualidade. Nomeadamente a interpretar «India Song», a canção do belo filme homónimo, que tinha outra presença luminosa, a de Delphyne Seyrig, no papel da mulher do vice-cônsul francês na Indochina.
Num texto a pretexto da sua recente morte, Anne Diatkine diria dela que se compunha de demasiados planetas, colocando-nos em risco de esquecermos alguns. Porque se tinha uma voz encantatória, dedicara-a preferencialmente ao teatro onde irrompera logo no início com Jean Vilar, que a poria a fazer par inesquecível com Gerard Philippe numa das primeiras edições do Festival de Avignon.
Muito mais tarde diria que escolhera os palcos como alternativa ao convento, rejeitado por falta de fé, mas neles investindo o mesmo fervor e ausência de futilidade. A via artística derivara, provavelmente, da mãe, uma inglesa que integrara as Tiller Girls, coristas do teatro de music-hall antes de casar com o dono de um conhecido restaurante de Montmartre.
Muito cedo conheceu a pobreza porque, falido o negócio, o pai instalara a família num prédio onde existia, igualmente, um bordel. Dataria de então a cumplicidade com as meretrizes, que tanto a ajudariam mais tarde, quando o pai, chocado por saber pelos jornais a carreira artística por que enveredara, a expulsa de casa.
Antes, ainda na escola primária, começara a pressentir a vocação na escola católica onde os alunos eram instados à leitura de textos em voz alta. A sua captava facilmente a atenção, suscitava o silêncio à volta. Depois, já adolescente, teve uma epifania ao ver «Antigona» de Anouilh: apoiada pela mãe decidiu estudar teatro.
Porque nunca se proporcionou vê-la em palco, conheci-a nalguns dos 140 filmes, que rodou. Antes do movimento inovador criado por Godard, Truffaut e uns quantos cúmplices mais, ela já participara num, que o anunciava: «L’Ascenseur pour l’Échaffaut», de Louis Malle, que a punha, desenfreada, a percorrer Paris ao som do free jazz de Miles Davis. Seguir-se-ia a colaboração com os nomes maiores do cinema da segunda metade do século XX, incluindo o nosso Manoel de Oliveira, que a contratou para o seu «Gebo e a Sombra» (2012).
Ao contrário do que se costuma dizer nestas ocasiões o teatro ou o cinema nada perderam com a sua morte:  aos 89 anos restava-lhe acolher solitariamente esse desiderato na casa em que se enclausurara nos últimos anos. Mas o rosto, quer em jovem, quer nos anos da maturidade, ficará a povoar o nosso imaginário cinéfilo. 

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