terça-feira, agosto 08, 2017

(DIM) Uma Ítaca cada vez mais distante

Eu que, em adolescente, tanto acreditei na Utopia comunista vivi com grande emoção o assassinato de Allende, a implosão do bloco soviético ou a viragem pró-capitalista da China. Em muitas alturas equacionei o dilema: eram as ideias que estavam erradas ou foi a sua aplicação a desviar-se demasiado da estrada de tijolos amarelos por onde se poderia alcançar o outro lado do arco-íris?
Manter a capacidade de acreditar na teoria contra os desvarios da praxis resultou numa prova de coerência, que teve de suportar e contornar o desvario psicopata de Pol Pot no Kampuchea. Durante um tempo a experiência cubana deu mostras de uma maior identificação entre os planos iniciais dos seus criadores e o que neles se traduzira em educação e saúde gratuita para a população como nenhuma outra era capaz de usufruir. Por muito que a manipulada desinformação porfiasse em ali ver provas de liberdades coartadas, sabíamos não ser coincidência o esquecer-se de as constatar igualmente restringidas no outro lado do estreito braço de mar, que a separava do fidalgal inimigo.
Forçoso foi reconhecer que dos confrontos entre regimes capitalistas e comunistas, foram estes os que mais tenazmente se viram acossados pelos inimigos, que, mesmo quando os não conseguiu vencer, lhes fez alterar as matrizes iniciais. Teria Estaline chegado à liderança da Rússia bolchevique se Moscovo não estivesse ameaçada pelo furor contrarrevolucionário do Exército Branco? Teria o maoísmo derivado para a Revolução Cultural sem a omnipresença imperialista, ora na península da Coreia, ora nas bases do arquipélago japonês? Seria expectável que Cuba se fechasse tanto ao exterior se não sofresse o ignóbil bloqueio americano?
E, nesta altura, quantas centenas de espiões da CIA se escondem por entre os que, em Caracas visam derrubar Nicolas Maduro, dão seguimento ao golpismo sempre ali manifestado pelas direitas plutocráticas desde a primeira vitória eleitoral de Hugo Chaves?
Tenho por mim que qualquer futuro regime fundamentado nas teorias de Karl Marx tem de levar muito a sério aquele conselho sábio de um dirigente chinês, que avisou não ser a Revolução uma espécie de convite para jantar. Mas evitando o mais possível o risco de paranoia!
Vem tudo isto a propósito de «Regresso a Ítaca», o filme que o francês Laurent Cantet foi rodar a Havana, cingindo o cenário a um apartamento com terraço para o Malecón Aproveitando o regresso de Amadeo, que se refugiara em Espanha dezasseis anos antes, quatro amigos reúnem-se-lhe para uma jantarada e uma noitada de convívio. Em tempos eles tinham sido militantes empenhado na causa revolucionária, mas cinquenta anos depois da fuga do ditador Batista, todos tornaram-se cínicos detratores da governação. Mesmo se um deles, Eddy, se convertera num bem sucedido burocrata.
Entre o entardecer de um dia e o amanhecer do seguinte, revivem-se tensões antigas com quase todos a acusarem-se quanto à cobardia, à desistência quanto a mudar fosse o que fosse.
Neste testemunho nada complacente com a realidade atual, o filme tanto revela a frustração dos velhos como a vontade de fuga dos mais novos, cabendo perguntar com quem contará o regime para manter a base social de apoio?
Émulos de Ulisses à deriva numa errância temporal, mas sem nunca saírem do mesmo sítio, os cinco protagonistas já não anteveem qualquer possibilidade de aportarem à mítica e, cada vez mais distante, Ítaca.


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