sábado, agosto 05, 2017

(DL) A demanda sobre quem somos

Quando se coloca a questão de saber quem, morrendo a 1 de abril, nos parece pregar a partida de aferirmos se a notícia peca ou não por exagerada, é de Mário Viegas, que nos lembramos. Mas, no ano em curso, foi nesse Dia das Mentiras, que Fernando Campos se finou. Tinha 92 anos e publicara romances sucessivos até 2012.
O primeiro, «A Casa do Pó», surgira, porém, tardiamente: em 1986, quando já contava 62 anos. Até então andara a dar aulas de grego, de latim e de história, só publicando trabalhos didáticos destinados aos alunos, que o admiravam como um verdeiro mestre. Porque a  missão de ensinar ajustasra-se na perfeição ao que teria gostado de fazer na vida.
Tivera porém uma breve e efémera estreia literária em 1947, quando os colegas da Universidade de Coimbra lhe surripiaram um poema para o publicarem na revista «Brisa» numa altura em que também Sophia de Mello Breyner ali dava os primeiros passos como escritora reconhecida.
Ainda assim não é verdadeira a ilação de ele só ter investido na literatura de ficção, quando se viu liberto das funções docentes: para esse romance de estreia andou dez anos a estudar tudo quanto poderia ser útil para credibilizar a história do Frei Pantaleão de Aveiro de quem começara por adquirir o «Itinerário da Terra Santa» num alfarrabista de rua. Baseando-se nesse relato, ele imaginou tal personagem, que vivera no século XVI, a indagar sobre a sua origem, porque ninguém lhe revelara quem tinham sido os verdadeiros pais. A vocação religiosa fora-lhe imposta sem atender à sua vontade até porque, debaixo do hábito, escondia-se um tenaz sedutor, capaz de comprar leques em Veneza para facilitar a conquista amorosa das esquivas moiras da Terra Santa.
Com humor e suspense, Fernando Campos desvendou-nos a realidade histórica dessa época turbulenta em que o Concílio de Trento andava a domesticar as dúvidas dos crentes. E, no final, quando se desvendam os amores ilícitos dos pais, pertencentes à aristocracia mais próxima do rei D. Manuel I, Pantaleão finda a demanda, quando a Pátria está em vias de desaparecer, consumado o desastre de Alcácer Quibir e a morte de Camões.
Passaram, pois, mais de quarenta anos quando surgiu, sem se fazer anunciar, um dos percursos mais consistentes na utilização da História nacional para criar romances impressivos, lidos com entusiasmo por quem não enjeita recorrer à ficção para acrescentar conhecimentos sobre as origens coletivas. No fundo temos algo de Pantaleão: todos gostaríamos de saber quem, lá muito para trás, esteve na génese dos ramos familiares de que só conhecemos os troncos mais próximos.


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