quarta-feira, agosto 09, 2017

(DIM) O sadismo do escritor pouco inspirado

Desde que Gabriel Garcia Marquez publicou um livro de memórias intitulado «Viver para contar», que essa definiu a fórmula mais sintética para classificar aquele tipo de escritores para quem a imaginação se cinge ao que possam viver. Sem vivenciares com algum interesse ei-los a contas com as angústias da página em branco. É o caso de Marcelo, o protagonista de «Beatriz«, filme do brasileiro Alberto Graça, que foi rodado maioritariamente em Lisboa.
No início temos um casal proveniente do Rio de Janeiro, decidido a instalar-se na nossa capital. Ela depressa arranja emprego como advogada, enquanto ele passa os dias a escrever. Estimula-o o editor, um tal Luís Ibarra, que o incita a abordar o tema do ciúme no novo romance, mesmo que isso implique sujeitar a cara metade a tal provação, que ela possa mesmo abeirar-se do abismo.
Depressa constatamos que a estória divide-se em quatro níveis: a imposta pelo contratador da ficção, a vivida pelo casal Marcelo e Beatriz, a que ele reproduz em ficção e a que se torna adaptada à versão teatral em Madrid, também sob os auspícios do primeiro.
Se, de início, a ideia parece interessante, logo nos vemos incomodados com a forma como os atores portugueses (Beatriz Batarda, Luís Lucas ou Margarida Marinho) debitam as suas falas num abrasileiramento que retira qualquer credibilidade ao que supostamente interpretam. Se os atores espanhóis falam com a naturalidade conferida pela sua língua, porque hão-de os nossos compatriotas prestarem-se a uma versão oralizada do novo Acordo Ortográfico? (e tenha-se em atenção, que até sou defensor convicto deste último!).
Vai ser incómoda, igualmente, a submissão da advogada ao seu companheiro, prestando-se às experiências mais extremas - o aborto, a prostituição, a overdose - para que o pouco inspirado escritor arranje matéria ficcional com que ultrapasse os frequentes bloqueios criativos. Nesse sentido as reações críticas à misoginia do argumento foram mais do que muitas como se comprova numa consulta breve às redes sociais.
É certo que, no final, a personagem do título chega ao limite da paciência, deixando o parceiro entregue aos seus egoísmos, mas convenhamos que não teria sido preciso uma fração do que sofrera, entretanto, para o meter a léguas...


Sem comentários: