quinta-feira, junho 29, 2017

(DL) Os vagabundos que descrevem o mundo

É grande a admiração que dedico aos escritores-viajantes. Começou com «Moby Dick», prolongou-se com Júlio Verne (afinal um itinerante pouco disposto a sair do conforto da sua casa!) e prolongou-se depois com Chatwin ou Luís Sepúlveda. Deem-me um livro de viagens por paisagens exóticas, com o autor a cirandar em simultâneo pelas profundezas de si mesmo e sou capaz de prolongar o prazer de tal descoberta desde a primeira à última página sem interrupção.
Nas experiências relatadas quase sempre na primeira pessoa, os autores prestam tributo aos escritores que os antecederam e de quem foram confessos admiradores. Nalguns casos até consideram o seu próprio percurso como uma homenagem a quem lhes dera tais prazeres. Como se lhes tivessem de pagar uma dívida. Chatwin, já acima citado, tem um texto de quando era muito jovem, em que dizia: “um dia seguirei os passos dos que me fizeram sonhar”...
Há os que chegaram à escrita por acidente. Não tinham adquirido o saber necessário para desafiar a página em branco mas a necessidade forçou-os a perder o medo, sobretudo por encontrarem no relato do que viveram a forma mais expedita de encontrarem os recursos necessários à sobrevivência e ao financiamento de novas viagens. Alguns consideram, porém, existir um tempo para escrever, outro para viajar, porque esta última atividade deverá ser tão plena, que não permita o ensejo de a ir racionalizando ao mesmo tempo. Os olhos obrigam-se a ficar bem abertos para tudo quanto há a descobrir, que não há tempo para qualquer outra ocupação.
Nicolas Bouvier, um dos mais empenhados cultores do género durante o século XX, defendia a necessidade do autor render-se totalmente à contemplação, sujeitando-se a um papel secundário no relato. Nesse sentido a sua prosa parece-nos hoje datada, fora de moda. Mas era ele o mais convencido dos defensores do ascetismo como condição necessária para traduzir depois em palavras o que se vira atentamente na fase da errância. Ao contrário de Bouvier é difícil encontrar hoje em dia um escritor-viajante, que se livre agilmente da tentação narcísica. E a velocidade com que os acontecimentos se sucedem impele-os a conciliar a errância com a rápida publicação do vivenciado. Não é a escrita, que funciona como complemento da viagem, mas esta que fundamenta o que se irá escrever. No fundo é a velha máxima de se ter de viver para depois escrever.
Por outro lado não deixa de ser curioso o paralelismo entre o nascimento da fotografia e o crescente entusiasmo pela literatura de viagens: os leitores pretendem conhecer, através do testemunho literário, outras paragens, mas parecem necessitar de referências previamente colhidas em imagens, que as revelam em duas dimensões. As palavras funcionam provavelmente como o estímulo à tridimensionalidade.

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