sábado, junho 17, 2017

(DL) Um dos três livros que levaria para uma ilha deserta

Há muitos anos que, perante a pergunta canónica de quais os três livros a levar para uma ilha deserta, a minha resposta é: «Confesso Que Vivi» de Pablo Neruda, «Memorial do Convento» de José Saramago e «Cem Anos de Solidão» de Gabriel Garcia Marquez. O primeiro pelo testemunho de vida, o segundo pela maestria da narrativa, e o terceiro pela inolvidável magia.
Li-o a bordo de um petroleiro, que carregara crude no Golfo Pérsico e navegaria durante trinta dias até vir descarregar a Leixões. Ao abrir a primeira página, o espanto. Nunca a primeira frase de um livro - mesmo o célebre início de «Anna Karenina» - me produziu tão súbito fascínio: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendia haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.”
Em duas linhas eram tantas as informações sobre as trezentas e muitas páginas, que se seguiriam!
Que fabulosos dias de leitura os que se seguiriam, à beira da piscina depois de almoço, antes de regressar à Casa das Máquinas para o turno das quatro às oito da noite! As mesmas circunstancias em que também me fascinaria com «O Nome da Rosa» do Umberto Eco e com «O Diabo e o Bom Deus» de Sartre.
Durante umas quantas tardes tirava o Índico do horizonte e transferia-me inteiramente para Macondo e para as intermináveis guerras em que estavam envolvidos Aureliano e José Arcadio Buendia.
Trinta e cinco anos passados desde então, e cinquenta desde a primeira edição do livro numa grande editora sul-americana, vale a pena reconhecer que o sortilégio criado no leitor, também esteve, de alguma forma, traduzido na sua criação. Garcia Marquez tivera uma epifania, quando conduzia o seu Opel branco para umas férias em Acapulco e teve de parar à beira da estrada para redigir aquele assombroso começo. Depois, já regressado a casa na Cidade do México, fechou-se durante quatro meses no seu pequeno escritório, quase nunca saindo à rua, tão obsessiva se tornou a recriação das pessoas e dos lugares semelhantes aos conhecidos na sua Arataca natal.
Sem emprego, nem qualquer outro rendimento, Garcia Marquez muito deveria a Mercedes, a esposa de toda a sua vida, que teve artes de garantir a sobrevivência da família com as reduzidas poupanças, a venda de tudo quanto em casa tivesse valor comercial e os créditos contraídos junto de todos os lojistas do bairro. Estes últimos prestaram-se ao sacrifício de tão longo crédito, porque o facto de existir um escritor fechado numa das casas vizinhas a criar o que prometia vir a ser uma notável obra artística a todos estimulava. E deram decerto por bem empregado o sacrifício: as edições sucessivas do livro esgotaram-se com inesperada rapidez, superando a capacidade de ir renovando os stocks nas livrarias argentinas, mexicanas e até europeias onde o nome de Garcia Marquez era acrescentado aos de Cortazar, Fuentes e Llosa, todos eles já a darem substância à moda do realismo mágico latino-americano.  Só quando o sucesso já era imparável noutras latitudes é que «Cem Anos de Solidão» ganhou justo reconhecimento na Colômbia: confirmação da lei segundo a qual os maiores talentos são mais facilmente reconhecidos noutras paragens do que nos sítios onde nasceram e cresceram.
Quinze anos depois da publicação do romance, e com tantos outros tendo igualmente Macondo como espaço privilegiado das respetivas estórias, Garcia Marquez ganhou um merecidíssimo Nobel.
Um dia destes voltarei ao romance para o reler com a maturidade e as delongas facultadas pelo presente em que me situo. E, ao contrário do que costuma aconselhar-se  - nunca se voltar ao sítio onde se foi feliz! - tenho a certeza de que voltarei a mergulhar num saboroso estado encantatório! 

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