terça-feira, junho 06, 2017

(DL) A nova Inquisição na época do Estado Novo

Retomo a abordagem de «Na Cova dos Leões», o excelente libelo de Tomás da Fonseca contra a Igreja Católica e, sobretudo, contra o culto mariano em Fátima, e fundamentado num conjunto de cartas escritas para o Cardeal Cerejeira que, em 1949, lançara furiosa campanha contra quem se atrevera a desmascarar corajosamente as trapaças de que se fizera cúmplice.
O escritor republicano até mostra admiração pelo interlocutor em quem reconhece cultura e inteligência bastantes para, no íntimo, reconhecer-lhe razão. Mas o sinal de perseguição ao herege saíra do Patriarcado, tão só aparecera no «República», um texto intitulado «Palavras Calmas». Tomás da Fonseca considera-o  “prosa corriqueira, destinada a viver uma tarde ou um dia, quando muito. Calmas e benignas para qualquer dos dois sectores em que iam dividir-se os portugueses - uns para manter o statu quo, outros, constituindo a grande maioria da Nação, no intuito de reconquistar direitos e regalias sociais, há tanto arrebatados por um regime despótico em que a Santa Sé ocupa o lugar de honra.”
Nesse início de janeiro de 1949 o país estava prestes a conhecer uma campanha eleitoral em que a minoria acossada em torno do regime pretendia reeleger o já muito velho e enfraquecido Carmona, enquanto os setores mais esclarecidos preparavam-se para lançar a candidatura oposicionista de Norton de Matos.
Temendo o fim da ditadura - até porque a derrota dos fascismos além-Pirinéus tornava cada vez mais insustentável a continuidade da sua réplica lusa que aqui fazia os possíveis por sobreviver - os setores ultramontanos da Igreja reagiram com a truculência desrespeitosa de quem só pelo infame aviltamento era capaz de reagir a argumentos baseados na Razão: “O sinal para abrir fogo foi dado a 11 de Janeiro, do alto das Novidades, órgão do Patriarcado. Mas em que tom! Por essa primeira badalada logo se revelou a elevação, aprumo e craveira moral dos fâmulos que Vossa Eminência põe no amanho da vinha do Senhor. Tratando-se de um adversário encanecido no manejo da pena, era natural que o defrontasse quem soubesse medir a distância que vai duma sala a uma viela, ou melhor, dum jornalista a um violento carrejão. Tal, porém, não fizeram, o que redundou em descrédito da empresa que dá entrada e distribui serviços a brigões pro– fissionais. O plumitivo das Novidades, dir-se-ia que habituado às cenas do estádio ou ao jogo do malhão, julgou-se com direito a partir-me as canelas ou a derribar-me à calhoada.
Como se depreende desta primeira missiva de Tomás da Fonseca para Cerejeira, ao insulto responde com um sarcasmo rico em vocabulário, como sucedia igualmente com o seu contemporâneo Aquilino.
Dias depois, quando já estavam a  organizar-se manifestações de desagravo à Senhora de Fátima, que consideravam afrontada pela sua prosa, o escritor volta a ser incisivamente irónico na segunda carta remetida ao inquisidor-mor:
“O incêndio que V. Eminência mandou atear está, por enquanto, limitado a pequenos sectores. Até eu poderia apagá-lo, se quisesse subir a escadaria do palácio que habitais e, batendo à porta, fosse cair-vos aos pés, exclamando: Penitet me! Mas não devo nem quero fazê-lo, porque tal incêndio, destinado a queimar uma alma, há-de atingir também instituições caducas, onde secularmente se aninharam e infiltraram a miséria, a crápula e os agentes do mal. Tal incêndio desempenha uma alta função: afugenta os miasmas, renova o ar e purifica tudo, mesmo os escombros, que servirão ainda para erguer fundações arejadas e limpas, dentro das quais não possam abrigar-se os que, vivendo em trevas, só por elas esperam conseguir o domínio das almas e o governo do mundo. Deixemos, pois, intensificar as labaredas e alargar-se o clarão, a fim de que todos possam ver a direcção que toma, áreas que abrasa e ruínas que deixa. Assim o quis, assim o tenha.”
Quando ainda mal passámos as setenta páginas já o livro nos está a dar rico testemunho de um período negro na nossa História quando a tirania do regime alicerçava-se numa Igreja, que lhe servia para a castração das almas inquietas.
(extratos retirados do livro publicado pela Antígona em 2009)


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