terça-feira, junho 20, 2017

(DIM) As inquietações místicas de Terrence Malick

Houve um tempo em que me cheguei a interessar pelas religiões orientais. Andava pelo fim da adolescência e comecei a consumir vulgatas sobre os princípios básicos do budismo. O mais sério terá sido «Siddhartha» de Hermann Hesse, que constituía leitura obrigatória para a geração entre os quinze e os vinte anos nessa época da falsa Primavera marcelista.
Mas também umas coisas difíceis de definir - mas arquiváveis na prateleira das muitas vigarices nessa altura editadas em forma de livro - e que tratavam da experiência de um tal Lobsang Rampa, apostado em nos convencer da existência de uma suposta terceira visão.
Entre o miúdo, que abria os olhos para a indignação antifascista e o que se se questionava e considerava imperioso o conhecimento do eu, andei a vacilar. Tanto mais que esses foram, igualmente, os anos do fascínio dos Beatles pelo vizinho hinduísmo, fazendo publicidade não negligenciável a uns quantos gurus indianos.
Católico já há muito sabia que o não era, budista ou hinduísta nunca sequer me vi tentado a ser tão desinteressantes eram comparativamente com as idiossincrasias em crescente pertinência nas intimas preocupações.
Nestas décadas desde então cumpridas, tenho vivido bem na rejeição dessa condição espiritual, que muitos consideram inerente à espécie humana. O meu Ego é assumidamente contraditório, sujeito às circunstâncias, que o vão reaferindo, mas norteado por um conjunto de valores dos quais nunca abdicarei: os que condizem com a aproximação tão acelerada quanto possível ao objetivo da sociedade sem classes concetualizado por Marx e Engels. Fiz-me comunista de coração, vou sendo socialista na convicção de existirem etapas intermédias imprescindíveis para que o objetivo final não se veja desviado pelas perversas caricaturas das fracassadas tentativas ensaiadas ao longo do século vinte em diversos continentes.
As religiões, o consumismo desenfreado ou certas trapaças regularmente publicitadas para espantar os incautos - ovnis, teorias conspirativas e distrações afins - só servem para iludir os rebanhos acefalizados, diariamente levados para a tosquia das suas mais-valias, impedindo-os tanto quanto possível de questionarem as razões para uns terem tanto e as multidões azombizadas a quase nada acederem.
Foi essa constatação, que me suscitou «Cavaleiro de Copas», o filme que Terrence Malick realizou em 2015. Do autor sabemos o quanto durou o afastamento da indústria cinematográfica depois de estreia animosa nos anos 70. Em tão longo interregno foram muitos os cinéfilos a questionarem-se sobre o porquê de tal exílio, dada a consagração de muitos dos pares, igualmente revelados nesses mesmos anos, e a obrigatória transição para as séries televisivas dos menos bem sucedidos. Pressupunha-se nele a escusa a uma indústria em que não se reconhecia, preferindo-lhe a Filosofia em que se formara.
Algumas exceções a esse voluntário afastamento, uma no final dos anos 90, outra já a meio da primeira década deste século, anunciavam o que «A Árvore da Vida» viria confirmar em 2011: Malick regressava para traduzir em cinema a sua trabalhada cosmogonia interior, profundamente influenciada pelas tais religiões orientais, que haviam sido objeto da minha curiosidade, e de posterior  e convicta rejeição pelo jovem que fui.
«Cavaleiro de Copas» é o percurso iniciático do personagem interpretado por Christian Bale até à encosta da montanha da sabedoria que intenta escalar. A surpresa que me fica é como um  septuagenário se deixa inebriar por algo, que a Ciência tem persistentemente rejeitado ao investigar as profundezas dos nossos cérebros e só julgaria fascinantes para adolescentes a contas com as suas angústias metafísicas. Crenças absurdas como as da reencarnação, dos kharmas e conceitos que tais integram o lado das sombras de um combate de ideias, que importa ganhar em nome da Razão. Tal como acontecia no século XVIII, quando a Revolução Francesa prometia torná-la definitiva, ainda andamos a contas com a sustentabilidade da vitória das Luzes sobre as Trevas. Com efeitos relevantes nos dias que correm: Trump, Erdogan, Orban e tantos outros biltres da mesma espécie vão durando por persistirem essas manifestações sombrias nos nossos dias. Importa destrui-los, reduzi-los a pó com  a força da nossa iluminada aposta num futuro diferente.
O incómodo suscitado pelo filme de Terrence Malick é o da consciência de, pelos mais ínvios meios, haver quem continue a querer mergulhar-nos na inconsequente caverna de Platão.


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