quarta-feira, junho 07, 2017

(DL) Quando atentamos na borra do café

Talvez constitua lei das coisas humanas o regressarmos ao passado mais remoto, quando nos aproximamos do final da nossa própria História. Pelo menos é isso que vou constatando nesta entrada nos sessentas e confirmando em quem mais ao perto de mim vagueia. Porque “o passado é uma casa que nunca chegamos a abandonar de vez, apesar de, ao nos mudarmos para o presente, alimentarmos a ilusão de termos fechado a sua porta para sempre.”
Isto é o que dizia Mário Benedetti quando, já nos setentas, começou a alinhar apontamentos, em forma de pequenos capítulos, de tudo quanto vivera entre os anos vinte e os anos quarenta na sua Montevideu natal. Arranjou um alter ego, Claudio, e fê-lo passar por tudo quanto lhe deu passaporte da infância para o estado adulto. A atração pela primeira professora, a descoberta de um cadáver no parque, a doença incurável da mãe, a compensação da orfandade com o primeiro e inesquecível beijo, o tango com Mariana que ficaria como sinónimo da felicidade no seu clímax. E também os sinais do mundo à volta: o enorme zepelim que deixa os adultos boquiabertos, mas ao qual os miúdos ficam indiferentes, mais interessados na brincadeira do momento. Ou a bomba de Nagasaki, que se ouve com maior atenção do que a de três dias antes em Hiroxima.
«A Borra do Café» - metáfora oportuna do que fica de uma vida - é livro bem humorado na inteligente ironia. Tem a ver com a descoberta do prazer e da morte, com a resignação perante a dor e testemunha a crescente consciência política e social do protagonista, duplo do autor. Está lá Jorge Luís Borges, mas também algo do realismo mágico, que tanta importância ganharia na escrita latino-americana do século XX.
Como aperitivo para a sugestão da sua leitura, aqui ficam dois trechos saborosos, que dão conta da sugestiva prosa do autor.
No primeiro «vemos» esse tal primeiro beijo dado pela maravilhosa Rita, vizinha sobre a qual ele tanto lamenta nada mais ter sabido quando, no crepúsculo da vida, lhe recorda o pressentimento da magia de que seriam capazes dois seres mutuamente atraídos:
“Da figueira, uma garotinha desconhecida me contemplava. Perguntei quem era e ela me disse que era Rita, prima de Norberto. Devia ter um ou dois anos a mais do que eu. Lentamente, foi escorregando pelos galhos até chegar à janela e desembarcar no meu quarto. Por entre as lágrimas, pude ver que era bastante bonita, que tinha um olhar doce e que seu reloginho de pulso marcava três de dez. […] Rita teve então um gesto que pôs o ponto final, agora sim, na minha infância: me beijou. Foi na bochecha, ao lado da comissura dos lábios, e ela prolongou um pouquinho aquele contato. Tenho a impressão de que aquilo foi o meu primeiro esboço de felicidade.” 
O segundo trecho revela-nos a rendição aos encantos de Mariana ao descrever o tango com ela dançado e que constitui momento antológico no que à utilização literária de tal dança diz respeito:
“É virtualmente impossível que, depois de vários tangos, dois corpos não comecem a se conhecer. Nessa sabedoria, nesse desenvolvimento do contato, o tango se diferencia de outros passos de dança que mantém os bailarinos afastados entre si ou só lhes permitem toques fugazes que não fazem história. O abraço do tango é, antes de mais nada comunicação, e se eu tivesse que adjetivá-la diria comunicação erótica, um prólogo do corpo-a-corpo que virá depois, ou não, mas que nessa hora surge nos bailarinos como um projeto verossímil. E quanto melhor o casal se entender na dança, quanto melhor se amoldar um corpo ao outro, quanto melhor se corresponderem o osso de um com a tenra carne de outra, mais evidente se fará a condição erótica de um bailado… “
Publicado há alguns meses pela Cavalo de Ferro é dos mais exaltantes livros a conhecer recente publicação entre nós.

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