sábado, junho 10, 2017

(DL) É mesmo viver para contar?

Num dos seus livros dedicados ao ofício de escritora, Rosa Montero lembra os casos específicos de Vladimir Nabokov, Simone de Beauvoir, Vargas Llosa e Joseph Conrad para conjeturar quanto à possibilidade do talento literário estar associado a experiências de vida assaz difíceis.
Não será regra obrigatória, porque casos há de quem teve vidas entediantes sem nada de particularmente exaltante a assinalar, e cultivaram a imaginação até dimensões reconhecidas como sedutoramente atrativas pelos seus leitores. Mas o viver para depois contar, como Gabriel Garcia Marquez defendeu ao ponto de assim designar as suas memórias incompletas, pode potenciar a predisposição ficcional.
O autor de «Lolita» terá perdido quase tudo na voragem da Revolução Bolchevique. A língua, as propriedades da família, o próprio pai, assassinado naquela prodigiosa confusão. A autora do «Segundo Sexo» tivera uma infância e adolescência abastadas, porque a família vivia da atividade bancária. Só que a bancarrota terá precipitado a súbita queda na pobreza e o conhecimento de inóspitos tugúrios onde perdeu tantas ilusões. O peruano - por sinal autor por quem cultivo recuada antipatia! - julgava-se o homem da família capaz de exercer precoce ascendente sobre a mãe e irmãos e, subitamente, o pai, dado incorretamente como defunto, regressou a casa e põs termo à arrogância de quem se considerava de todos superior. Conrad nascera em família aristocrata da Polónia submetida ao czar e viu a quietude infantil sacudida pelo desterro da família para o cu de judas na estepe asiática. A mãe morreu de tuberculose e, vitimado pelo mesmo mal, o pai não lhe tardou a seguir no encalço.
Quatro exemplos elucidativos de quem conhecera a riqueza ou o poder e, de súbito, vira-se remetido a condições de sobrevivência no limiar do suportável.  Sentiram a presença incontornável da morte e do exílio e todas as dificuldades inimagináveis até as verterem para múltiplos personagens, pelos quais viriam a recuperar estatuto social e reconhecimento literário.
Seriam romancistas tão admirados se tivessem sido poupados a tantas vicissitudes? É daquelas perguntas académicas sobre as quais só poderemos conjeturar num ou noutro sentido. Mas que tais vivencias os terão formatado, sem disso se darem conta, não sobrarão grandes dúvidas!

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