sábado, junho 24, 2017

(DIM) A nostalgia da inocência com que se ria tão facilmente

Era uma vez um miúdo que, uma manhã, deu com um circo instalado em frente à sua casa.  Que momento inesquecível: o espetáculo visto nessa noite tinha homens superfortes, anões, atiradores de facas, a mulher Hércules, um faquir que se deixou enterrar a metro e meio de profundidade na própria pista, a sereia Neptunia, os irmãos siameses apresentados em álcool num grande frasco. Mas quando vieram os palhaços o miúdo assustou-se, quis-se ir embora. Até porque lhe lembravam algumas das mais desagradáveis pessoas da aldeia: o sabujo que costumava assediar as mulheres com obscenidades, a freira anã sempre a falar sozinha, o mutilado da Grande Guerra, a viúva capaz de reproduzir de cor os discursos de Mussolini, os cocheiros da estação ferroviária sempre a invetivarem-se e a emitirem gases uns para os outros ou o louco ainda a julgar-se no teatro de guerra e a simular movimentos de ataque.
Talvez tenha sido essa primeira reação negativa ao espetáculo com palhaços a motivar Federico Fellini a rodar um filme sobre eles muitos anos depois. «Clowns», estreado em 1970, serve de vista ao passado, porque os circos pouco se assemelham aos da sua infância. Deixaram de apelar para uma certa inocência, perdida em favor de uma hipocrisia definitivamente instalada no quotidiano da sociedade contemporânea.
O projeto torna-se, então, numa sucessão de entrevistas com antigos palhaços, que vão discutindo como ainda pode ser possível fazer rir o público, cientes de já não resultarem as estratégias, que lhes haviam garantido tantos risos e palmas.
Pierre Étaix, então casado com mais mediática herdeira do clã Frattellini, sugere a possibilidade de ter ocorrido nas pessoas a perda da capacidade em se rirem.  Por isso mesmo, mais do que um filme sobre o circo, ou sobre os palhaços, acaba por constituir uma meditação sobre a solidão e a velhice, servido pela lindíssima banda sonora de Nino Rota.
No fundo Fellini recorre ao que o motivou em tantos filmes: a nostálgica evocação da infância confrontada com a sensação de perda de algo de indefinido nos seus tempos de adulto.


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