quarta-feira, junho 14, 2017

A perversidade dos bárbaros quando se abriram as comportas

Num dia as escolas soviéticas ensinavam a amizade e a solidariedade entre os povos. No seguinte surgiam camiões com mercenários, tanques guiados por jovens soldados, helicópteros nos céus e a guerra deflagrava no que poderia imaginar-se de mais brutal. Em Sukhumi georgianos matavam abecásios, abecásios matavam georgianos e os russos só procuravam salvar a pele no fogo cruzado entre uns e outros. No seio das famílias o cunhado apunhalava o marido da irmã por ter a nacionalidade errada, o aluno matava o velho professora por lhe ensinar a língua que lhe tinham dito para odiar.
Olga a tudo isto assistia e a muito mais: aos roubos, às destruições gratuitas, às violações. E desejara morrer, pendurando-se de uma corda para se poupar a mais horror. Apenas o instinto lhe tolhera a vontade no derradeiro instante.  Mas quando a mãe conseguira vender os poucos haveres ao desbarato para assim arranjar um bilhete de avião para «casa», não lhe conseguiu resistir à férrea vontade em a enviar para a desconhecida Moscovo, porque, sendo mais nova, poderia ter todo o resto da vida à sua frente.
Svetlana Alexievich encontrou-a como topógrafa seis meses antes de dela receber uma carta a revelar-lhe ter tomado a única alternativa possível para continuar a viver: a entrada num convento.
A meio de «O Fim do Homem Soviético» o que nos impressiona é a extrema crueldade posta à solta, quando as comportas se abriram e as supostas liberdades ocidentais se estenderam a todo o vasto território, que pertencera à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O resultado foi o caos, a anarquia, a manifestação dos mais reles impulsos recalcados em sucessivas gerações educadas nos tão opostos valores socialistas.
Damos então maior importância a tudo quanto se conta do passado estalinista, quando bastava a denúncia de um vizinho, de um colega da escola, de um familiar, para que um comentário irónico sobre o Pai dos Povos equivalesse a anos de trabalhos forçados num dos muitos campos de trabalho siberianos.
A corrupção, que se transformaria no mais recente peculato dos oligarcas, já estava bem presente nos comandantes desses campos quando sujeitavam os «inimigos do povo» à fome, que os tuberculizava, para encherem os bolsos com a venda às mafias do mercado negro dos alimentos a eles destinados. Ou quando negavam o principio de igualdade entre homens e mulheres sugerindo a estas últimas que se lhes tornassem obsequiosas nos encantos se pretendiam sobreviver às condenações.
A tragédia da história soviética vai-se revelando à medida que as páginas se vão virando: os valores estavam lá e até eram respeitados, adotados pela maioria dos que acreditavam tratarem-se de mais do que vazia retórica. Mas qual maçã condenada a apodrecer, a lagarta estava já lá dentro, pronta para a corromper. E ela era representada pelos que dos valores só reservavam o pretexto para melhor satisfazerem os seus cúpidos interesses.

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