domingo, junho 04, 2017

(DL) «A Cura», um belíssimo romance de Pedro Eiras

Uma das questões sem resposta a propósito da literatura portuguesa dos nossos dias tem a ver com a falta de notoriedade de que padece Pedro Eiras. Apesar de vasta obra publicada raramente o encontramos referenciado nas publicações destinadas a leitores menos especializados, mas assumidamente interessados pelo que vai sendo proposto em forma de romance, conto, ensaio ou teatro.
Será que, por viver e lecionar no Porto, está demasiado longe das capelinhas lisboetas onde se promovem os autores, que as integram, independentemente de terem ou não talento equivalente? Ou as editoras em que tem publicado não fazem o trabalho promocional, que as suas obras mereceriam?
Sei que o primeiro romance que dele li - «Anais de Pena Ventosa» - constituiu uma espantosa surpresa. Datado de 2001, retratava a época do Condado Portucalense, quando Afonso Henriques ainda nem sequer existia. Usando um vocabulário e uma construção da frase, que não eram inteiramente os da época, mas passavam bem por o serem, sentíamo-nos como leitores projetados para uma verdadeira viagem no tempo. Compreendíamos com rigor quais os valores preponderantes de então, mormente as desconfianças por quem viera do sul, dos territórios entretanto resgatados aos mouros, e enfrentava os preconceitos disseminados pelo fanatismo interesseiro do clero cristão.
«Cartas Reencontradas de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro», o romance do ano passado publicado pela Assírio & Alvim, constituiu outra excelente surpresa. Revelando um conhecimento profundo da obra dos dois poetas de Orpheu, punha-nos a acreditar na verosimilhança dos conteúdos e do estilo das cartas enviadas de Lisboa para Paris e tanto quanto se sabe perdidas após o suicídio do destinatário. No início do romance o narrador contava-nos as circunstâncias em que elas lhe teriam chegado às mãos para no-las dar a conhecer.
Agora concluí a leitura de «A Cura», romance publicado em 2013, cuja reedição está nos escaparates das livrarias com uma capa onde se reencontra «O Grito» de Munch. E uma vez mais Eiras nos surpreende pela erudição revelada no tema principal: a contradição entre a Religião e a Psicanálise.
Qual Zelig literário, faz do narrador um credível Segismundo, cultor das teorias do seu homónimo vienense, e sujeito a duras provas por quem fora para ele importante ao longo da vida: a mãe falecida precocemente e em quem nunca pudera projetar os fantasmas  outrora demonstrados na tragédia grega de Édipo para com Jocasta; o pai, demasiado fraco para vir a ser um potencia e bem necessário Laio; o professor Wagner, seu mentor e pai espiritual, ele sim dotado de uma ascendência, mas que nunca lhe permitiria ultrapassar a fase da subserviente admiração; Rita, a namorada demasiado volúvel nas opções de vida, inclusivamente nas afetivas, e que o obrigará a ser o psicanalista psicanalisado; e há o cliente, figura improvável, que o leva a questionar-se quanto à sua real existência e capaz de lhe provocar inesperada transformação.
Pelo meio existem hipóteses muito estimulantes como a de se comparar Deus ao superego, Cristo ao ego e o Espírito Santo ao id. O que, embora mais sugerido do que explicito no romance, permitiria explicar o sucesso do catolicismo pela semelhança dos seus dogmas com a divisão do nosso cérebro em consciente, subconsciente e inconsciente.
Convenhamos que, para um ateu confesso, o final não é aquele que melhor me satisfaria, mas quem sou eu, mero leitor, para pôr em  questão a opção ficcional do escritor?
Sei que, chegado à última página, muito me penitencio por ter sucessivamente adiado a aproximação feita por Eiras à obra de J. S. Bach, já há uns meses a aguardar a vez numa das estantes cá de casa, mas sucessivamente preterido pela pertinência de outras aliciantes leituras.

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