terça-feira, junho 27, 2017

(DIM) Pacino em «O Mercador de Veneza» no Cineclube Gandaia desta 5ª feira

Esta semana conclui-se um conjunto de ciclos do Cineclube Gandaia, que nos fez visitar sucessivamente os universos cinematográficos das obras baseadas em Shakespeare, filmes franceses e portugueses, os derradeiros títulos de Hitchcock e algumas das participações mais interessantes de Al Pacino na Sétima Arte.
Já na sexta-feira, dia 30, começam as sessões ao ar livre, que prometem diversão inteligente aos veraneantes da Costa de Caparica, sejam os residentes, sejam os milhares, que em julho e agosto a tornam particularmente cosmopolita.
Para concluir o ciclo dedicado a Pacino nada mais natural do que o filme, que se interliga com os primeiros exibidos neste conjunto de títulos: aquele em que interpreta um dos mais antipáticos vilões de Shakespeare. Ele é Shylock, um judeu cujo negócio é o da usura.
Não será obra claramente antissemita, que a tornaria objeto ambíguo tão só se tenha em conta tudo quanto com o Holocausto teve a ver? Poderá ser visto a essa luz, mas é para moderar a impressão mais óbvia a qualquer espectador do filme, que o realizador, Michael Radford, começa-o com uma legenda a denunciar a triste sorte dos judeus na Veneza do século XVI, que explicaria o carácter vingativo do protagonista. De facto, nessa época, vigorava na cidade da laguna adriática uma legislação, que obrigava os judeus a envergarem em público um chapéu vermelho para melhor serem identificados. Acaso não cumprissem a regra incorriam na pena de morte.
Pode-se dizer que os nazis não inventaram nada de novo quando obrigaram os judeus a cozerem estrelas de seis pontas sob um fundo amarelo nos seus casacos e outras peças de vestuário!
Na própria sociedade isabelina em que Shakespeare viveu, a hostilidade aos judeus era comum: eles tinham sido expulsos das Ilhas Britânicas em 1290 e só Cromwell lhes permitira o regresso em 1656. Não admira que, correspondendo ao espírito do seu tempo, o bardo de Stratford-upon-Avon traçasse Shylock sob características repulsivas.
Mas convenhamos que a aparência é mais complexa do que uma perspetiva imediatista no sentido de o considerar um vilão sem remissão. Basta atentarmos num dos mais interessantes monólogos da peça, no Ato III, cena XV, em que Shylock defende a legitimidade do que fizera:
“Um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afetos, paixões? Alimentado com a mesma comida, ferido pelas mesmas armas, exposto às mesmas doenças, tratado da mesma forma, sujeito ao mesmo calor e frio do mesmo verão ou inverno, como qualquer cristão? Se nos picarem não sangramos? Se nos fizerem cócegas não rimos? Se nos envenenam não morremos? Se nos agredirem não nos deveremos vingar?”
Shylock decide vingar-se do mercador António, farto de todas as faltas de consideração por que passou anos a fio. Por isso, quando ele lhe vem pedir três mil ducados para que o amigo Bassanio aceda aos encantos da bela, e sobretudo rica, Portia, estipula um contrato macabro: se, ao fim de três meses, Antonio não lhe pagar o empréstimo e os juros, Shylock fica autorizado a cortar-lhe uma libra de carne tão próxima quanto possível do coração.
Antonio não podia imaginar que falharia o pagamento devido ao naufrágio do seu navio e das mercadorias por ele transportadas. Não fosse o engenho de Portia (e aqui temos mais um forte personagem feminino, capaz de corresponder com inteligência e ousadia às dificuldades!) e a sua situação seria complicada. O que sucede em tribunal é o contrário: de acusador, Shylock, passa a condenado, sofrendo rude castigo. Não só é forçado a converter-se ao catolicismo como acaba falido e ostracizado pelos demais judeus da cidade.
Compreende-se que Al Pacino tenha mostrado particular interesse neste desempenho. Na apresentação de «Sea of Love» já víramos como chegara a ponderar o abandono dos estúdios cinematográficos em proveito dos palcos onde sempre manifestou interesse em superlativizar o percurso de ator. Mesmo Shakespeare dera-lhe o ensejo de realizar um documentário imprescindível - «Looking for Richard» - sobre outro grande papel de vilão na vasta obra do dramaturgo seiscentista. Um crítico francês diria que a sua representação de Shylock era cabotina … mas admirável!
É, pois, sob o signo dessa admirabilidade que se interrompem estes ciclos e damos lugar aos que, ao ar livre, propiciarão grandes satisfações cinéfilas.

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