Uma das memórias que guardo das minhas passagens pela América do Sul foi a vivida na casa das máquinas do paquete «Funchal», quando contratámos uma equipa de operários argentinos para nos ajudarem a reparar um gerador, cuja necessidade já se fazia sentir na altura - estávamos em Buenos Aires em pleno verão austral - mas se tornaria imprescindível, quando atravessássemos a zona equatorial no lado do Pacífico na volta ao subcontinente, que se concluiria com o regresso ao Atlântico via canal do Panamá.
Essa equipa era apenas constituída pelo encarregado Aníbal e pelo ajudante cujo nome sempre desconheci, porque sempre o vi ser tratado por El Índio.
Foi nessa altura que tomei a consciência de ainda existirem descendentes dos habitantes originais dessas latitudes, apesar das chacinas aí perpetradas por sucessivas levas de colonizadores europeus.
Apesar dos muitos decibéis emitidos por toda a maquinaria em funcionamento era possível ir para a zona dos compressores frigoríficos durante as pausas para descanso e, enquanto eles bebiam o inevitável mate, que eu recusava avesso que sempre fui ao chá, ia conhecendo o possível sobre o que mais me fascinava naquelas latitudes: a vida aventureira dos gaúchos nas vastas pampas argentinas e o «Martin Fierro», código de comportamento escrito por José Hernandez na segunda metade do século XIX que, em forma de poema, dava conselhos - hoje vistos como incrivelmente conservadores! - sobre como agir nas mais variadas situações.
Jorge Luis Borges já escrevera um texto muito interessante sobre essas estrofes, mas o mais curioso foi encontrar no Aníbal um seu avisado cultor, predispondo-se a declamar muitas delas ali mesmo, fazendo-me lembrar o inesquecível confronto de tenores e sopranos numa cena de «O Navio» de Federico Fellini.
«Histórias de Bêbados», um dos contos de Luís Sepúlveda, que integra este seu título de 2011, também revisita esses temas a propósito de um encontro num bar de San Carlos de Bariloche: pagando uns copos a um cliente ali presente - mal visto pelo barman - obtém dele um relato detalhado das proezas do trisavô, que não era mais do que o mítico Davy Crockett, depois morto em Álamo.
Tal como as histórias ouvidas em primeira mão pela boca de Aníbal e do Índio, Sepúlveda colhe as que se referem aos aventureiros vindos de longe para ganhar fortuna sem olhar ao que houvesse a fazer e, por isso, se faziam alistar como mercenários dos latifundiários, que pretendiam ver as suas vastas herdades despovoadas dos que ali habitavam desde muito antes de aí terem chegado. Ou de como beldades chegadas à região para servirem de governantas ou de educadoras aos filhos dos colonos descobriam as potencialidades de venderem o corpo e de, ao fim de dez ou quinze anos, já serem elas próprias donas de domínios de muitos hectares.
O prazer da leitura dos livros de Sepúlveda tem a ver com isso mesmo: serem-me contadas histórias incomuns, capazes de darem outra dimensão às paisagens, que eu próprio havia olhado com um enorme fascínio.
Não admira que depois de ter percorrido toda a costa sul-americana banhada, quer pelo Pacífico, quer pelo Atlântico, ainda considere como a viagem ideal da minha vida a de seguir as pisadas do Che a exemplo do que ele descreveu no «Diários de Motocicleta», percorrendo o subcontinente por terra dos dois lados da Cordilheira.
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