Esta semana estava a fazer zapping e parei num dos melhores canais disponíveis por cabo: o Sundance, pertencente ao ator e realizador Robert Redford. Passava então um delicioso desenho animado do National Film Board do Canadá, com um conto romântico a ser ilustrado por uma das mais conhecidas canções de Marlene Dietrich interpretada no filme que a celebrizou: «O Anjo Azul» de Josef von Sternberg.
Tanto bastou para que me apetecesse voltar a esse filme de 1930, mas que mantém desde então uma capacidade espantosa para impressionar favoravelmente quem o vê. Daí o link aqui anexo para quem também quiser passar cem minutos a ver cinema com C grande.
Atenhamo-nos na história: em 1925 o professor Rath é um respeitável professor numa pequena cidade portuária, quase medieval, infundindo particular temor aos alunos, que o alcunharam de «Unrath» (crápula).
Quando descobre que os adolescentes andam a frequentar o cabaré «Anjo Azul» por estarem fascinados pela cantora Lola-Lola decide ir ali resgatá-los, ciente de se tratar de um antro de devassidão.
A intenção depressa cede ao encanto que sente pela cantora, com quem não tarda a casar, acompanhando-a na tournée, que a levará para longe dali.
Aquele que fora um exemplo para os cidadãos da sua cidade, passa a ganhar a vida na venda das fotografias ousadas da mulher - que o engana descaradamente! - ou a servir de comparsa ao ilusionista.
Quatro anos depois, no regresso da companhia ao «Anjo Azul», o diretor decide fundamentar o sucesso do espetáculo na imitação do galo com que ele divertira os convidados na festa de casamento.
Desesperado por se ver na máxima degradação da sua identidade, Rath tenta estrangular Lola Lola sem o conseguir. Foge então para o edifício da antiga escola para morrer na sua antiga secretária. É ela que lhe servirá de túmulo da dignidade e das ilusões perdidas.
Sternberg reinventou com este filme o mito da borboleta que se aproxima demasiado da chama da vela e queima as asas. O que de alguma forma condiz com o tipo de relacionamento entre o realizador com a atriz, depressa emancipada da sua asa protetora. Ou o do ator, que faz de Rath, Emil Jannings, cuja adesão ao nazismo - que o incensaria! - significou a condenação definitiva da possibilidade de voltar a interpretar filmes ou peças de teatro no pós-guerra.
Houve até quem visse no filme uma certa metáfora do que aconteceria nos anos seguintes: Rath personificaria o povo alemão, até então respeitável, mas cuja entrega apaixonada ao nazismo implicará a queda no abismo.
Mas o filme vale por bem mais do que essas ilações mais ou menos ambíguas: Sternberg dissocia-se aqui do expressionismo, de que fora um dos principais cultores, para anunciar a chegada do realismo poético, que conheceria exemplos de antologia no cinema francês e norte-americano dessa década de 30. E valoriza Marlène cuja sensualidade exalta na sua carnalidade, feita de sugestões de desejo e de prazer.
Rejeitando o maniqueísmo, que a intriga poderia suscitar, Sternberg faz de Lola Lola uma mulher generosa, mas também egoísta. Porque entregando-se a todos acaba por não pertencer a ninguém. E, no fundo, como representa um ideal de mulher no imaginário masculino, ninguém verdadeiramente a possuirá.
Mais de oito décadas passadas sobre a sua estreia, «O Anjo Azul» é um dos poucos filmes, que consegue ser convincente na demonstração da importância dada muitas vezes ao destino...
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