sexta-feira, julho 27, 2018

(I) Beleza, Duchamp, Pavese e Berl


1. O que é a beleza? Enquanto vou olhando para os mails ouço distraidamente um programa alemão em que o entrevistador vai procurar uma definição do que ela significa para diversas pessoas, uma das quais lembra uma afirmação de Voltaire: se fizessem essa pergunta a um sapo ele diria tratar-se de algo verde, com uns olhos grandes e umas patas ainda maiores. Razão para confirmar que os padrões de beleza nada têm de universal. Por exemplo uma das raparigas entrevistadas é modelo numa escola de Belas Artes em Berlim e reconhece em si uma beleza, que na aldeia natal, na Flandres, ninguém lhe reconhecia. Mudara de espaço e de forma de exposição do corpo e o conceito logo se lhe redefinira.
Noutro bairro da capital alemã detetam-se intenções de agradar aos outros na forma como cada um se passeia adornado dos trajos e acessórios mais vistosos ... pelo menos na sua perspetiva. Mas uma filósofa, Silvia Mazzini, cuida de realçar a beleza interior dando o exemplo de Sócrates, um seu confrade de quem a eternidade conservou registo de se tratar de quem era muito feio, mas cujas ideias vieram a ser determinantes  no pensamento ocidental.
Tenho a sorte de conservar na memória muitos momentos de incomensurável beleza. Há os mais íntimos, que não são chamados aqui para o caso, mas posso sempre realçar o quase sufoco de, na popa de um navio, apreciar a luz crepuscular do céu a conferir maior amplitude às falésias dos fiordes noruegueses  num dos verões ali passados.
2. Em outubro passarão cinquenta anos sobre a morte de Marcel Duchamp e preparam-se inúmeras iniciativas destinadas a evocar quem pôs toda a intelectualidade ocidental a reequacionar o conceito de objeto artístico. Com humor e inteligência crismou-se de «anartista», definindo o «ready-made» como a coisa manufacturada, que promovido ao nível de uma obra de arte.
Joanne Snrech, que comissaria a exposição «ABCDUCHAMP» no Museu das Belas Artes de Rouen, considera que essa opção constitui a rutura com a tradição novecentista, que conferia ao artista uma dimensão heroica, solitária, muito de acordo com o sentido romântico do que era tido como génio.
O gesto de transferir para o objeto o protagonismo do ato artístico justifica que Duchamp seja considerado o pai da arte contemporânea. Retrospetivamente abriu espaço para a arte conceptual e para a body art, que já está prenunciada na sua obra dos anos vinte ao travestir-se no seu alter ego feminino Rrose Sélavy.
Nessa mesma linha temos de reconhecer coerência ao seu epitáfio - «Na realidade, são sempre os outros quem morrem» - porque volta a transferir para outrem o protagonismo, que tenderia a ser dado ao seu autor.
3. Pouco lembrado, Cesare Pavese é escritor italiano que tinha boa reputação no círculo pós-adolescente em que me movia por volta da Revolução de Abril, e cuja leitura mereceria ser recuperada.
Num texto confessional de 27 de junho de 1946 ele anota: «Tentação do escritor. Ter escrito algo que te dê a sensação de uma arma acabada de disparar, ainda tremelicante e quente, esvaziado de tudo quanto és, pelo qual não só tenhas descarregado tudo quanto sabes, mas também o que suspeitas ou supões, bem como os sobressaltos, os fantasmas do inconsciente  - ter feito isso mesmo custando uma enorme fadiga e uma longa tensão com uma prudência feita de dias, de tremores, de bruscas descobertas e de fracassos, fixando toda a vida nesse momento - aperceber-se que tudo é como nada se um sinal humano, uma palavra, uma presença não o acolhe, não o acalenta - e morrer de frio - falar no deserto - estar só dia e noite como um morto.»
Cinco anos antes, a 2 de maio de 1941, dividia os homens em duas categorias: «Existem os verticais, que experimentam continuamente, passam de uma pessoa para outra, abandonando uma pela seguinte, que se torturam e sofrem se uma das antigas paixões o voltam a tentar enquanto escrevem um conto. São os românticos.
Em contraponto estão os horizontais, que cuidam da experiência com uma vasta gama de valores mas, em simultâneo, são capazes de se entusiasmarem por pessoas e coisas sem renegarem as que conhecem; os que da calma e convicção interior, aproveitam, dominam e temperam as mais variadas pulsões. São os clássicos.»
4. No pós-guerra a França tem sido palco de sucessivas recuperações dos que, durante a Segunda Guerra Mundial tiveram comportamento crapuloso, alinhando convictamente com os nazis ou, no mínimo, colaborando ativamente com o governo colaboracionista de Pétain.
Céline ou Drieu de La Rochelle são os casos mais óbvios, mas neles se inclui, igualmente, Emmanuel Berl que, apesar de judeu, homossexual e se enquadrar no pensamento de esquerda no início dos anos trinta, não enjeitou a possibilidade de escrever discursos para o marechal traidor.
Quando se desiludiu com Vichy adotou a cómoda fatiota de pacifista, remetendo-se a um exílio interior na Corrèze, que se ampliou quando se viu publicamente acusado pelos existencialistas a propósito desses comprometimentos passados. Agora, a pretexto de o identificarem como um ecologista precoce, há quem pretenda dar segunda vida aos seus escritos.
Pessoalmente tenho escassa simpatia por quem, nos momentos decisivos da História, decidiu assumir-se na trincheira errada...

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