quinta-feira, julho 26, 2018

(DL) Quando Thomas Mann relacionou o nazismo com a música alemã


Em 1943, quando a Segunda Guerra estava a conhecer rápida evolução, com a Alemanha nazi a passar dos ataques expansionistas para o da cada vez mais difícil defesa dos territórios ocupados, Thomas Mann estava exilado na Califórnia. Tendo como vizinhos Bertolt Brecht e Theodor Adorno com eles discutia a situação política, retendo-lhes importante influência no romance, cuja escrita então o motivava. «Doutor Fausto», o título em causa, não terá sido o melhor que escreveu, mas é decerto um dos que testemunham com pertinente acuidade as suas preocupações em tais circunstâncias.

O narrador é o professor Zeitblom, que conta a história do compositor Adrian Leverkuhn. A exemplo do Fausto da lenda ele decidiu fazer um pacto com o Diabo, abdicando da essência humana para criar obras de incomparável genialidade. Mas o desiderato é trágico porque acaba por enlouquecer. Há, pois, um paralelo com a cultura alemã, também ela seduzida por uma personalidade mefistofélica e, caída num sinistro desvario.
A abordagem romanesca da crise europeia revisita os mitos, sobretudo os de cunho maléfico. Thomas Mann quis com ela deixar uma espécie de testamento literário, porque confessaria depois nunca ter sentido uma tal empatia com um personagem saído da sua imaginação, um artista que, a exemplo de Nietzsche, renunciara à possibilidade de amar, caindo na alienação para carregar no íntimo o sofrimento da época.
Não admira que Adrian se dedique à música suscitando a questão: se a cultura endoidece, será ela a culpada? É que o Pacto já havia sido firmado entre a música alemã e os nazis, estando subjacente em muitas das obras compostas por Wagner no século anterior, e depois corroboradas com o efetivo colaboracionismo de Richard Strauss e Carl Orff. Deste último, a muito apreciada «Carmina Burana» inscreve-se na ordem de valores celebrados anualmente no Festival de Beyreuth, desde 1920 dirigido por Winifred Wagner, cuja idolatria por Hitler não conhecia limites.
Adorno estava a concetualizar essa relação entre a cultura musical alemã e o nazismo e as suas ideias foram ganhando expressão literária no romance do amigo. Que não ignorava o comprometimento ativo dos maiores maestros germânicos do regime, mormente Fürtwangler e Herbert von Karajan.
O que o romance de Thomas Mann perspetiva é que ser culto não inviabiliza a possibilidade de se deixar seduzir pelas monstruosidades mais assassinas. Sobretudo se a arrogância de sentir-se acima do comum dos mortais impedir que se o veja nas suas fraquezas, mas sobretudo nas bem mais admiráveis qualidades. Nesse sentido, e numa altura em que existem novos mostrengos à solta enquanto titulares de governos nos vários continentes, a análise aqui exposta pelo escritor alemão mantém-se plenamente atual.

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