quarta-feira, julho 18, 2018

(DL) Mário de Carvalho: «Burgueses somos nós todos ou ainda menos»


«Burgueses, somos nós todos ou ainda menos» - a nova coletânea de contos de Mário de Carvalho - vai buscar o título a um poema de Mário de Cesariny, que diz pertencermos a essa horrorosa condição desde pequenos. E, de facto, se ser-se português fosse medido exclusivamente através do comportamento dos personagens das onze histórias bem poderíamos considerar que Almada Negreiros tinha razão quando dizia os portugueses dotados de todas os defeitos só lhes faltando as qualidades. Porque os homens têm desabrida sexualidade, mesmo que a idade os torne impotentes ou a desatenção conjugal lhes adorne as cabeças com os tão temidos chifres. As mulheres, por seu lado, também não se revelam mais virtuosas, porque facilmente estimuladas pelas tentações da carne.
Há o viúvo inconsolável com a tardia descoberta das aventuras adúlteras da defunta, não vendo mitigar-se-lhe os instintos homicidas.  Ou o medíocre professor, que entretém o tédio de um jantar de negócios lembrando as circunstâncias em que se deitara com duas das afetadas convivas. Ou o emigrante afastado da cidade durante décadas que vem à procura dos amores passados, concluindo que só lhe restam velhas com achaques, ébrias ou incontinentes. Ou a surpresa de encontrar entrevado um dos mais bem sucedidos colegas de escola a quem não deixara, porém, de secretamente o trair, mediante a ligação com a mulher com quem parecia formar um casal de sonho.  Ou ainda os efeitos das falências de BES e congéneres na sobressaltada existência de quem lhes confiara investimentos insensatos. Ou outras demonstrações de como o tempo constrói ruínas nos relacionamentos, mais do que os monumentos elogiados por Marguerite Yourcenar. Ou como os filhos dececionam os pais e vice-versa...
Tal como no título anterior - «Ronda das Mil Belas em Frol» - o sexo está presente em quase todas as histórias, mas eivado de preconceitos e de preocupação com as aparências. Quase meio século depois  da Revolução de Abril, a geração que era jovem nessa época não se conseguiu livrar de toda a canga conservadora transmitida pela educação judaico-cristã.
Mas, mais do que as intrigas, invariavelmente, orientadas para comportamentos de gente medíocre, com quem não sentimos qualquer empatia, há a maravilhosa escrita de Mário de Carvalho, um dos autores vivos que melhor escreve na língua portuguesa, não só pelo recurso a um riquíssimo léxico, mas também por o desenvolver em histórias feitas com frases muito curtas, depuradas de injustificadas adjetivações. Se é consensual a tese de se necessitar de enorme talento para ser bem sucedido como contista, Mário de Carvalho há muito demonstrou que o tem de sobra, suscitando prazer a sua leitura.

Sem comentários: